Será que a área dos profissionais da informação está preparada para lidar com a “Identidade de Gênero”? De que modo os bibliotecários, gestores de bibliotecas, estão adequando tanto a biblioteca quanto sua equipe para atender o interagente LGBT?
A biblioteca tem um grande papel social. Ela possibilita as condições de acesso à informação, devendo oferecer instrumentos adequados que atendam às necessidades dos leitores, partindo sempre do principio de que estes sim são o bem maior de toda e qualquer unidade de informação. Poderíamos discorrer sobre infindas obras referentes ao que tange “Planejamento de Bibliotecas” ou mesmo “Desenvolvimento de Coleções”, mas nossa intenção não é abordar a cientificidade, mas sim fazer uma reflexão, debater mesmo sobre a pauta Identidade de Gênero, que dentro da contemporaneidade, urge estar cercada de informações para que assim tenhamos condições de possibilitar uma sociedade mais informada, condizente para formar opiniões embasadas em conhecimento adquirido. Este é o único caminho dentro do combate ao preconceito. É o preconceito que faz com que nossas bibliotecas tenham sempre um sentido heteronormativo quanto às necessidades de informação.
O individuo trans possui necessidades de informações que precisam ser atendidas pelo bibliotecário. Não se trata de assistencialismo, mas dever profissional de informar as pessoas sobre seus direitos e minorar os efeitos da falta de informação, o que, aliás, com relação a pessoas trans, podem causar mortes e estas são evitáveis pela informação, e é nosso dever informar os interagentes que fazem parte da nossa comunidade informacional.
Pessoas trans estão na sociedade e estarão entre os interagentes potenciais de qualquer biblioteca. É o preconceito que faz com que ignoremos sua existência.
Vejam este relato, real e infelizmente atual:
Há longos três anos, pois é esta a percepção que temos quando refletimos a partir do lugar de onde estamos e falamos que tenho sobrevivido a diversas e recorrentes situações de vulnerabilidade e visibilidade negativa.
Embora com esforços constantes da Reitoria, do Gese (Grupo de Pesquisa e Sexualidade e Escola) também do Instituto de Ciências Humanas e da Informação ao qual sou vinculado enquanto graduando do curso de Bacharelado em História que definitivamente a Universidade ainda é território hostil a nossa presença. Não passamos de Aliens nestes espaços onde sequer somos respeitados em nossas especificidades. Quando pensamos em violência de pronto nos remetemos às agressões físicas. No entanto a violência é pontual em sua ampla dimensão.
Outro dia, durante o intervalo entre um período e outro, me encontrava no Centro de Convivência quando uma graduanda do curso de Pedagogia solicitou nossa colaboração a partir do preenchimento de um questionário. Neste era solicitada a identificação do participante e para minha surpresa a segunda questão perguntava qual era meu “sexo” Respondi com ressalva, posto que grifei a palavra sexo e abaixo escrevi “gênero”.
No ambiente acadêmico a prática do “silenciamento” e da ‘’naturalização’’ em virtude de nossa presença é arma eficaz utilizada por aqueles que preferem omitir seus preconceitos a admiti-los. Esta práxis é constante desde o banheiro até a biblioteca onde os sujeitos em questão a partir do modo como “interagem” conosco acabam servindo como sinalizadores de nosso gênero, evidenciando seus preconceitos à custa de nossa natureza a qual refutamos quando abordada enquanto “orientação” sexual. Não se trata a nosso ver de orientação, tampouco condição. É e tão somente nossa natureza. Quando cientistas abandonarem os arcaicos hábitos de catalogação de seus objetos de estudos, talvez tenhamos oportunidade de viver em uma sociedade cuja concepção filosófica hoje existe apenas no mundo ideal.
Luis Mahin Domingues, graduando de Bacharelado em História e bolsista do Gese/CNPq
Em 2010, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) lançou o “Manual de Comunicação LGBT”, que busca esclarecer as dúvidas dos profissionais de comunicação e da sociedade em geral sobre diversidade sexual e identidade de gênero. O manual é voltado para profissionais, estudantes e professores da área de comunicação: jornalistas, radialistas, publicitários, relações públicas, bibliotecários, entre outros. O principal objetivo da ABGLT com esse lançamento é o de reduzir o uso inadequado e discriminatório de terminologias que afetam a cidadania e dignidade da população LGBT, seus familiares e amigos.
O manual está, ou em tese deveria estar, disponível no site do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, bastando seguir os passos, tal como mostra a imagem abaixo:
FONTE: observatoriodegenero.gov.br
Mas para nosso espanto, ao acessar o link que nos leva até o manual, simplesmente recebemos esta mensagem: “Essa transação foi rejeitada porque possivelmente viola a política de segurança da informação da Presidência da República. Entre em contato com o administrador do sistema para mais informações”.
FONTE: Observatório de Gênero do Governo Federal
Seguimos a orientação e entramos em contato, via fone, com os responsáveis pela administração do sistema e obtivemos como resposta a alegação de que o site estava com “Erro de Rede”. Mas como nossa pertinência centra-se na disponibilidade de informações sobre a disponibilização de informações sobre Identidade de Gênero, buscamos então averiguar se o respectivo manual está disponível, seja em forma física ou digital, dentro dos sistemas de bibliotecas universitárias. Deste modo, tentamos compreender porque pessoas, como o acadêmico Luis acima mencionado, seguem passando por constrangimentos e preconceitos dentro da Universidade. Fizemos uma busca simples, apenas inserindo no campo de busca o título do manual: Manual de Comunicação LGBT.
Em verdade nossa intenção foi meramente de saber o que os bibliotecários estão buscando para oferecer como esclarecimento sobre o assunto para seus interagentes e principalmente analisar a disponibilidade de informações, já que o próprio manual cita o “Bibliotecário” como sendo um dos personagens com a incumbência de disseminar o conteúdo, sendo ele tratado inclusive como voz de comunicação nesta pauta de suma relevância. Conforme podemos averiguar abaixo, estes foram nossos resultados:
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal Minas Gerais
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Rio Grande – RS
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Sistema de Bibliotecas da Universidade Federal de Brasilia
Sistema de Bibliotecas da Universidade do Estado de São Paulo
Alguns exemplos de demandas informacionais de pessoas trans
Apesar de saberem que o silicone industrial contém muitas impurezas e que sua aplicação pode causar infecção e danos ao corpo (inclusive deformando partes), muitos trans ainda utilizam desta técnica. Para a profissional do sexo é um mal necessário. Para muitas pessoas trans é muito importante alcançar a passabilide cis, esse é o momento em que será lida com o sexo que se identifica. Os óbitos são frequentes devido ao uso desse material. “É que, quando você se assume travesti ou transexual, você quer assumir uma imagem feminina e abandonar de vez a masculina. Afinal, você se encontrou nessa condição e precisa mudar. E quer mudar rápido, ver o corpo ganhar curvas e quer chamar atenção o mais rápido possível. E o silicone industrial é muito mais barato que a prótese .” O desejo do corpo feminino para mulheres trans é muito importante, o que faz com que sobreponham esse desejo ao risco que correm.
Cabe ao profissional da informação, mesmo diante da escassa literatura sobre o assunto, ao ser demandado, apresentar conjunto de informações que subsidiem a pessoa trans no processo de decisão. A decisão pelo silicone industrial também é uma questão de sobrevivência da pessoa trans, sendo rejeitada pelos locais de trabalho e tendo a prostituição como opção profissional em 90% dos casos. Quanto mais a mulher trans tem o corpo feminino, maior é seu ganho financeiro. São vários interesses em jogo e o profissional da informação precisa ser sensível quanto as necessidades específicas da pessoa trans.
Não pode lançar sobre ela a sua visão de mundo, mas assim como em qualquer demanda de informação, deve se limitar a fornecer o conjunto informacional que melhor atenda a demanda da usuária, de acordo com a sua linguagem e necessidade. O uso do silicone industrial pode causar diversas limitações físicas, e diante delas a usuária precisa saber quais locais ele deve buscar seus direitos previdenciários. No caso de doença causada pelo uso do silicone industrial deve ser orientada a buscar o auxilio doença com o auxílio de um advogado ou defensor público. Para saber mais sobre o uso do silicone industrial, assista ao documentário “Bombadeira” disponível no Youtube.
O tratamento hormonal é algo muito importante para pessoas trans e travestis. O objetivo do tratamento é a mudança física, fazer com que o corpo transpareça o que já é. Não é pelo tratamento hormonal que se “nasce” uma mulher ou homens trans. Eles já o são a partir do momento que se identificam como tal. Não há necessidade de nenhum receituário ou comprovante de hormonização para que a identidade da pessoa seja respeitada. Desde o momento em que a mulher trans assume a identidade feminina ela é uma mulher e o mesmo acontece com o homem trans e as travestis. A via normal desse processo inicia com a ida a médicos como endocrinologista, que é o especialista em tratamento hormonal. Mas não é incomum que pessoas trans encontrem profissionais não habilitados para tratar suas especificidades e também que se recusem a fazer o tratamento. A transexualidade ainda é vista como uma patologia. O CID CID 10 F 64.0, a define como:
Desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.
Essa patologização da identidade faz com que as pessoas procurem se automedicar. A automedicação da pessoa trans não tem o mesmo objetivo de uma pessoa hipocondríaca. Ela visa diminuir o sofrimento intenso que é ter o corpo visível diferente de sua identidade. Segundo Mello et al., dentre a população LGBT, as pessoas travestis e transexuais são as que mais enfrentam dificuldades ao buscarem atendimentos nos serviços públicos de saúde – não só quando reivindicam serviços especializados, como o processo transexualizador, mas em diversas outras ocasiões nas quais buscam atendimento – pela enérgica trans/travestifobia que sofrem atrelada à discriminação por outros marcadores sociais – como pobreza, raça/cor, aparência física – e pela escassez de serviços de saúde específicos.
O profissional da informação não pode receitar medicamentos, mas pode indicar fontes de informação confiáveis sobre os hormônios e seus efeitos. Pode indicar locais onde existe o tratamento hormonal ou onde exista atendimento social ou gratuito. O bom atendimento da demanda, novamente é que o melhor atenda a demanda do usuário.
A pessoa trans sem escolaridade e desempregada está mais exposta à vulnerabilidade social. No ambiente de biblioteca, principalmente a pública e escolar, é importante que o acervo tenha material que auxilie a pessoa a complementar seus estudos. Os computadores disponíveis ao público devem permitir tempo de acesso para que essas pessoas possam fazer cursos para aprimorar seus conhecimentos. O bibliotecário pode elaborar lista de sites que oferecem cursos gratuitos para que as pessoas possam preencher as lacunas causadas pela baixa escolaridade.
No ambiente de biblioteca também é propícia a inscrição em vestibulares, concursos e no Enem. O bibliotecário pode auxiliar na inscrição para que o nome social esteja nos documentos para que a pessoa possa participar dos processos seletivos com seus direitos assegurados. Também nesse ambiente pode encaminhar para instituições de ensino, postos de trabalho formais ou informais ou até mesmo oportunidades empresariais. Pode também permitir que pessoas trans utilizem das salas de estudo, ou as mesas para fazer contatos profissionais, como um apoio ao início de empresas, funcionando como uma incubadora de empresas.
As bibliotecas também são o ambiente propício para compartilhamento de informações de saúde sexual. Se for um local livre de homofobia pode ser buscado pelas pessoas trans para informações dessa natureza. Bibliotecas que funcionam no período noturno podem ser alternativas para pessoas trans que trabalham no período noturno.
Nome social
“Nome social deve ser assegurado a qualquer pessoa que se declare trans ou travesti. E o respeito ao nome social demanda educação em sua aplicação para que os agentes, públicos e privados, respeitem sua utilização. Se a autodeterminação de gênero fosse um direito, não haveria choques entre nome de registro que consta nos documentos oficiais e nome social – que é o nome que corresponde a sua própria identidade de gênero vivida e compreendida exclusivamente por cada indivíduo. Pois aqueles que conseguem alterar seus nomes judicialmente (única via possível atualmente) não têm maiores constrangimentos com relação à apresentação dos documentos oficiais, uma vez que ali seu nome terá respaldo legal. Mas nome social é um direito primário, alinhado com o direito a gozar de uma identidade que corresponde àquela com a qual você se compreende. As pessoas trans e travestis querem respeito ao nome que de fato possuem e não ao nome que lhes deram.” – Magô Tonhon.
O nome social é um direito, e não um favor. O decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Esse decreto define o nome social como a designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida. E a identidade de gênero como a dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.
No artigo terceiro deste decreto está regulamentado que os registros dos sistemas de informação, de cadastros, de programas, de serviços, de fichas, de formulários, de prontuários e congêneres dos órgãos e das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional deverão conter o campo “nome social” em destaque, acompanhado do nome civil, que será utilizado apenas para fins administrativos internos. Logo, os softwares utilizados para gestão de bibliotecas deverão ser adaptados para atender à essa regulamentação. O bibliotecário deve orientar os auxiliares e os responsáveis pelo registro de usuários/interagentes do dever de atender à essa regulamentação.
O decreto se dirige a entes da administração pública direta e indireta. Infelizmente sua aplicação não abrange as organizações privadas que podem impedir o acesso ao nome social baseado em qualquer argumento que julgue conveniente. São vários casos em que universidades se eximem do direito do uso do nome social baseando-se em critérios burocráticos. Cabe as bibliotecas munir seus usuários/interagentes com informações para defesa desse direito e orientar a busca pelos meios jurídicos para a efetivação desse direito. Bibliotecas que utilizam a carteirinha somente como meio de controle de circulação de materiais podem utilizar o nome social e não se prenderem a legislação como forma de se eximir do cumprimento do uso do nome social.
Alguns termos devem ser abolidos no ambiente de biblioteca: traveco (o certo é travesti), opção sexual (orientação sexual, ninguém optou ser hétero) e homossexualismo (homossexualidade, homossexualismo patologiza, trata como doença). Use sempre o pronome correspondente à identidade de gênero da usuária. Não importam seus conceitos morais ou religiosos. Usar o pronome masculino para uma mulher travesti é ofensivo e causa muito sofrimento. Olhe sempre pela perspectiva do outro e não pela sua própria.
São muitas demandas e muita informação. Nosso texto ficou mais longo do que queríamos, mas queríamos aproveitar o dia mundial da lembrança (20 de novembro) trans para fomentar o diálogo entre os bibliotecários. Dia 29 de janeiro também é voltado para visibilidade trans, não tendo hierarquia entre os dois. O dia 20 de novembro é para lembrar a memória de Rita Hesler que foi espancada e recebeu golpes de faca em Allston, Massachussets. Esse dia serve para nos lembrar de que somos o país que mais mata pessoas trans no mundo. E diante de todas as informações apresentadas não há como negar nosso papel como bibliotecárias de auxiliar as pessoas trans.