Comuniquei pela primeira vez a minha pesquisa sobre a organização da informação em charges no XXV Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia, Documentação, Ciência da Informação e Gestão da Informação (ENEBD), realizado em Belo Horizonte (MG), em 2012. Se de alguma forma eu ainda resistia a uma espécie de “relacionamento sério” com as charges, aquele Encontro foi marcado pela minha decisão em parar de resistir ao objeto que me encantava o quanto mais me debruçava sobre ele.

Na ocasião, apresentei resultados parciais de uma pesquisa de iniciação científica sobre análise documentária de charges. A pesquisa discutiu os aspectos críticos da aplicação dos métodos da análise de pinturas em charges, na intenção de subsidiar estudos futuros. Ao terminar a apresentação, vi expressões de aprovação nos rostos do auditório e da banca de avaliadores. Os comentários, de modo geral, eram elogios à novidade do tema na Ciência da Informação (CI). Porém, um dos comentaristas usou dessa mesma novidade para apontar uma lacuna no trabalho. Ele me questionou sobre o caráter informativo da charge, o que justificaria a atenção da CI para esse objeto. Para essa pergunta, eu não tinha resposta.

Fiquei muito contente com a boa recepção do trabalho pelos pares. Porém, aquela pergunta foi o que abriu novos horizontes para a minha pesquisa. Embora soubesse que tradicionalmente a CI se ocupou de textos técnico-científico e que nas últimas décadas vem se abrindo para outros tipos de informação, eu não sabia como transpassar essa barreira teórica no caso das charges. Era necessário justificá-la como recurso de informação, isto é, como potencial objeto da CI.

O que são charges?

 Ao iniciar a minha tentativa de justificar as pesquisas de charge na CI, comecei por aprofundar o próprio conceito de charge. Neste ponto encontrei um grande problema. Apesar de esforços de estudiosos de diversas áreas do conhecimento para definir a charge, as propostas de seus conceitos estão longe de um consenso. Em seu uso comum, a charge ainda pode ser confundida com outros gêneros similares, tais como: o cartum, a caricatura e a tirinha em quadrinhos.

Não encontrei na literatura especializada consultada um conceito de charge capaz de abarcar todos os elementos conceituais que tem sido interessantes ao meu estudo. Por esse motivo, senti a necessidade de ousar em propor um conceito de charge satisfatório para as primeiras fases da minha pesquisa. Proponho, então, a charge como um gênero discursivo de uso híbrido das linguagens verbal e imagética, caracterizado pela temporalidade e pela sátira e crítica referentes a determinado evento, em geral de natureza política. Quero reforçar a limitação dessa definição de charge, de modo que para a obtenção de um conceito consistente seja necessária uma análise mais minuciosa e profunda do objeto.

A charge de Aldo Henrique publicada na 19ª edição da Revista Biblioo exemplifica bem o que tenho chamado de charge. Como é possível ver, na charge existe simultaneidade entre desenho e escrita. As caricaturas dos editores da revista e a faixa representam a linguagem imagética e a escrita está no enunciado “dia do bibliotecário”. A temporalidade da charge é marcada, uma vez que faz referência a um evento específico ocorrido em uma data específica (12 de março de 2013, na Biblioteca Nacional). A sátira e a crítica também são perceptíveis na faixa preta na boca das caricaturas e nos narizes de palhaço em cada personagem. Também é clara a opinião do chargista em relação ao evento a que faz referência, evidenciando a natureza política da charge.

Thulio Gomes - Charges - Elas tem lugar nos sistemas de informaçao - Imagem

Um horizonte na noção da informatividade

 Outro ponto para o qual eu tive que me preocupar foi com o conceito de informação. De um modo geral, a reflexão e a prática na Ciência da Informação costumam apresentar o conceito de informação adotado. Tal apresentação no meu estudo seria importante na medida em que fosse capaz de elucidar os aspectos informativos da charge. Entretanto, baseando-se em Cristina Ortega e Marilda de Lara, tomei como pressuposto de que “é a informatividade que permite entrever o jogo intertextual que caracteriza os processos de recepção, determinando os critérios de relevância para que algo seja informativo”. Dessa forma, na tentativa de justificar a charge como objeto da Ciência da Informação em vez de associá-la a um conceito de informação se privilegiou a discussão sobre a sua informatividade, isto é, a sua capacidade de informar.

O uso comum da charge está relacionado à sua função como gênero jornalístico de opinião. A charge é produto de uma crítica político-social de um chargista, expressa graficamente, com sarcasmo e ironia, referente a um determinado evento atual. Além do seu uso comum, a charge também é um documento relevante para diferentes comunidades disciplinares, sendo, por exemplo, objeto de estudos nos domínios das Artes Visuais, da Filosofia da Arte, das Ciências Sociais, da Comunicação Social, da Comunicação Visual, da Educação, da Linguística e da Literatura entre outros. A linguista Onici Flôres, em seu livro A leitura da charge, defende o valor histórico das charges como repositório de forças ideológicas em ação, como instrumento de reflexo e projeção das principais concepções e dos pontos de vista em circulação em determinada sociedade.

Níveis de ser documento em Rendón Rojas

 Uma das possibilidades teóricas para demonstrar a informatividade da charge foi a noção de documento. Especificamente, me reportei ao conceito de documento proposto pelo filósofo mexicano Miguel Ángel Rendón Rojas, em seu livro Bases teóricas y filosóficas de la Bibliotecología. O filósofo distingue três níveis de “ser documento”, segundo a variação informativa dos objetos em contextos epistemológicos e científicos e as atividades cognitivas de que são produto.

Em um primeiro nível se encontra o objeto tal e como é. Não há uma intervenção para sua aparição ou uma intencionalidade de fazê-lo documento. Assim, no primeiro nível se tem o objeto em si. Para exemplificar, retorno à charge de Aldo Henrique. Ela é um produto de uma crítica político-social de um chargista, expressa graficamente, com sarcasmo e ironia, referente a um determinado evento atual. A charge enquanto gênero jornalístico opinativo configura o nível do objeto em si.

No segundo nível aparece o mesmo objeto contendo informação para especialistas de determinada disciplina, visando a subsidiar estudos sobre as mensagens apresentadas por esse objeto. Neste nível, o objeto se converte em um documento para o trabalho do especialista, deixando de ser um objeto em si para ser um objeto para o outro. Até pode fisicamente constituir no mesmo objeto, porém na dimensão simbólica assume um significado adicional ao que possuía quando era somente um objeto em si. A charge, por exemplo, para um historiador deixa de ser apenas a expressão gráfica da crítica de um chargista para ser um indício das principais ideias e opiniões circulantes em determinado contexto socio-histórico. A charge de Aldo Henrique poderá, quiçá um dia, ser utilizada por um especialista como evidência do contexto da classe profissional dos bibliotecários do Rio de Janeiro no ano de 2013 e também da história da Revista Biblioo.

O documento configura um terceiro nível quando é elaborado por um profissional da informação e este se encarrega de convertê-lo em um documento “bibliotecológico”. Graças à ação desse profissional em inserir um documento dentro de um sistema de informação, ao documento é agregada informação quando este é representado, organizado e preparado para ser recuperado por um usuário. O documento dentro desse sistema tem um ser agregado que não tinha antes. A ação do profissional da informação dá um novo sentido ao documento inicial porque o coloca dentro de um contexto específico. Somente depois dessa ação, o documento adquire personalidade dentro do sistema de informação. Em nosso caso, os profissionais da informação tratam a charge a fim de lhe agregar valor informativo para determinada disciplina, segundo parâmetros objetivos do sistema de informação.

Sistemas de informação de charges

 Nos periódicos brasileiros de CI não há estudos específicos sobre a charge. É possível até encontrar estudos sobre as histórias em quadrinhos que mencionam a charge como recurso de informação. No entanto, são apenas menções, não havendo um aprofundamento na discussão sobre o tema. A dita falta de pesquisas sugere uma dificuldade dos profissionais da área em inserir a charge nos sistemas de informação. Torna-se, portanto, necessário o refinamento de estudos sobre a charge a partir da perspectiva dos estudos de informação.

Para finalizar, eu retomo a pergunta que compõe o título deste artigo. As charges têm lugar nos sistemas de informação? Então, eu respondo que sim. Meus estudos têm indicado que a capacidade de informar da charge está relacionada ao seu aspecto pragmático, variando conforme os distintos ambientes e situações concretas de uso. Desse modo, tem sido possível afirmar que a charge é um potencial objeto de investigação pela CI, na intenção de valorizá-la como geradora de conhecimento e, na perspectiva de Rendón Rojas, na sua conversão em documento de terceiro nível.

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