No dia 12 de abril de 1915 iniciou-se as aulas do primeiro curso de Biblioteconomia do Brasil. Cem anos depois, é um bom momento para se falar sobre a história dessa disciplina. Um famoso historiador inglês, Eric Hobsbawm, escreveu em seu livro Sobre História (Cia das Letas, 1998): “Eu costumava pensar que a profissão de historiador, ao contrario, digamos, de um físico nuclear, não pudesse, pelo menos, produzir danos. Agora sei que pode”.

Hobsbawm estava falando do uso político, ideológico, da história, que é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas, étnicas ou fundamentalistas, seja essa história embasada em fatos ou resgatada de algum passado mítico.

A história é um encadeamento de fatos, acontecimentos ao longo do tempo, fatos que são ao mesmo tempo causa e consequência, tudo o que acontece ajuda a determinar o que virá a seguir, podemos pensar na história como uma grande rede, sendo os fatos os nós da rede, tudo entrelaçado entre si, dando significado, mas também nos prendendo e nos determinando.

A História é a base na qual surgem as nações, ideologias e as áreas do conhecimento. Já as profissões surgem de uma necessidade específica de dada sociedade, mas é o movimento daquela ocupação ao longo do tempo que lhe dá corpo e a pode-lhes transformar em algo a mais, e todas as pesquisas, estudos e lutas desses profissionais é que tornam a profissão, seja lá qual for, no que é no mundo de hoje e podem torná-la uma ciência, como foi com a Biblioteconomia.

Jonathas de Carvalho, no livro Uma análise sobre a identidade da Biblioteconomia: perspectivas históricas e objetos de estudo (Edição do Autor, 2012), nos diz: “Mesmo diante das dificuldades é necessário a abordagem acerca da história da Biblioteconomia, a fim de compreender a sua identidade”. Ou seja, para nós bibliotecários entendermos a nós mesmos, por qual razão estamos aqui fazendo o que fazemos e nas condições que estamos, precisamos entender nossa história.

Aí começa o problema. Um duplo problema, na verdade. Temos uma baixa produção acadêmica sobre a nossa história, que por sua vez está ligada a outro problema que é a pouca importância que damos para isso. Sobretudo nas faculdades em geral, temos matérias nas grades do curso com nomes como Introdução ou Fundamentos à/da Ciência da Informação, ou à/da Biblioteconomia, que nos dão uma história factual, pouco mais que datas e acontecimentos marcantes, pouco relacionados entre si e com o momento histórico da época.

Podemos citar pouquíssimos autores nacionais que tratam direta ou indiretamente com essa questão nas décadas recentes. Inclusive alguns têm livros bases para essa discussão. Vou citar dois: Francisco das Chagas de Souza e César Augusto Castro. Ambos fundamentais para essa discussão, mas para uma área que tem agora 100 anos desde o surgimento do primeiro curso de Biblioteconomia, existem muitas questões ainda a serem discutidas.

No entanto, isso não nos interessa no dia-a-dia. Nós bibliotecários reclamamos de nosso presente, de nosso pouco reconhecimento na sociedade e olhamos para o futuro, ora com esperança, ora com temor; esperamos que o deus-maquina, com as novas técnicas e tecnologias, no ajude ou nos destrua. Só que não adianta olhar para o futuro e torcer que este resolva os problemas do presente. Temos que, na verdade, olhar para trás e ver o que nós fizemos.

Portanto, cabe aqui um pequeno resumo. Considero o ponto de partida da Biblioteconomia, tal qual existe hoje, a criação do curso de Biblioteconomia da Biblioteca Nacional, em 1911, que só formou sua primeira turma em 1915. Essa data é interessante, pois o Brasil recebia um enorme fluxo de imigrantes, um grande número de fábricas nacionais começava a ser criado e o mundo passava pela Primeira Guerra Mundial.

Em função disso, pergunto: que influencias, se é que houve, esses fatos tiveram para a criação do curso? Esse curso visava o preparo de profissionais para trabalharem na Biblioteca Nacional, e eles deveriam ser pessoas eruditas, amantes dos livros e recebiam no curso o modelo francês de Biblioteconomia, da École dês Chartes.

Em São Paulo, o Mackenzie passa a ministrar um curso de Biblioteconomia com uma nova visão, seguindo o modelo norte-americano. Isso no ano de 1929. Temos aí um novo momento mundial: os Estados Unidos da América desponta como liderança mundial, e é o ano da crise mundial, ventos de mudança sopram no Brasil na década de 1920 com a Semana de Arte Moderna, movimento tenentista, guerras civis, organização maior dos trabalhadores, criação do PCB, elementos que levam a Revolução de 30.

O curso em São Paulo migra do Mackenzie para o Departamento de Cultura de São Paulo e de lá para a Escola Livre de Sociologia e Política, em 1940, estando lá até os dias atuais e graças a incentivos americanos, como a Fundação Rockefeller que preparou, apoiou e disseminou o modelo norte-americano, de São Paulo para todo o país.

Aqui cabe explicar quem eram esses primeiros bibliotecários, para entender suas lutas e visões, tanto os de São Paulo, como os do Rio de Janeiro. Eram a elite intelectual e financeira do país. Portanto, os rumos da área estavam ligados as suas visões de mundo. Em O ensino de Biblioteconomia no contexto brasileiro (EDUFSC, 2009), Francisco das Chagas de Souza nos mostra quem eram os interessados e que encabeçavam o curso:

“Mais uma vez, um curso de Biblioteconomia criado no país, dentro de um contexto sócio-político-econômico resultante de mudanças profundas veio a significar uma mudança de trajetória da Biblioteconomia no país, deixando patente a sua vinculação a classe dominante. Desde a ideia até os alunos, o curso, salvo raras particularidades, era projeto da elite, como toda a Biblioteconomia brasileira dos anos 1940 e 1950 próximos.”

Consolidado o curso de Biblioteconomia, no molde norte-americano, os bibliotecários se organizaram para lutar pelos seus direitos. Nos anos de 1954 e 1958 conseguiram o reconhecimento da profissão e em 1962 a lei na qual nos agarramos com unhas e dentes até hoje. Lutas que ocorreram para impedir que outros profissionais entrassem numa área que consideramos nossa, isso na época em que a industrialização no Brasil seguia em ritmo acelerado, o que demandava profissionais especializados, inclusive na área de organização documental.

Da consolidação da Biblioteconomia no Brasil, até o momento em que se lê esse texto, o bibliotecário discute sua formação, seu papel na sociedade, o seu ser e fazer. Nós fazemos isso a um bocado de tempo, sendo que os que começaram isso eram de uma classe abastada, lutando por seus direitos e visões de mundo.

Não estou com isso negando a importância deles, pelo contrário, nós não lembramos, mas eles devem ser lembrados: Rubens Borba de Moraes (que pelo menos ganhou uma biografia), Dorothy Gropp, Adelpha Figueiredo, Bastos Tigre, Laura Russo (fiquei espantando quando uma colega minha de estagio tinha que fazer um trabalho sobre ela e nada achava) e tantos outros. Lembrar-se deles não para enaltecê-los, e sim para entender seus papeis que determinaram nosso presente, seus avanços e limites.

Assim como precisamos nos lembrar e entender o papel que teve as associações e organizações dos bibliotecários, como a primeira criada e famosa Associação Paulista de Bibliotecários (APB). O que a APB fez? Pelo que ela lutou? Procurou alguma integração entre o profissional e a sociedade?

Olhamos para o futuro, no entanto, de lá não teremos nenhuma resposta. Só o passado pode responder as perguntas do presente, não como um guia para o futuro, mas como uma lição que devemos aprender. O passado não é um oráculo, mas um determinante do futuro. Temos muito que aprender com nossa história e um trabalho hercúleo para desenterrá-la dos escombros do passado e trazê-la à luz do presente, para enfim dizer: “somos isso e fizemos tais cousas que nos levaram ao agora”.

Por fim, termino com Hobsbawm e a esperança que essa pequena defesa pelo menos nos faça pensar de onde viemos como ciência e como classe profissional:

“A postura que adotamos com respeito ao passado, quais as relações entre passado, presente e futuro não são apenas questões de interesse vital para todos: são indispensáveis. (…) Não podemos deixar de aprender com isso, pois é o que a experiência significa. Podemos aprender coisas erradas – e, positivamente, é o que fazemos com frequência -, mas se não aprendermos, ou não temos nenhuma oportunidade de aprender, ou nos recusamos a aprender de algum passado algo que é relevante ao nosso proposito, somos, no limite, mentalmente anormais.”

Para Eric Hobsbawm, a reflexão sistemática sobre o objeto e os objetivos da narrativa historiográfica não se distingue da própria escrita da história. Cada parágrafo de sua obra traz implícita a força de suas convicções e a consciência aguda das responsabilidades que envolvem a tarefa do historiador. Nestes ensaios da maturidade, muitos deles ainda inéditos, Hobsbawm ocupa-se mais diretamente das armadilhas e métodos da disciplina que o consagrou como um dos observadores privilegiados do mundo moderno. A riqueza de seu longo e bem-sucedido percurso intelectual, voltado para o estudo das relações entre passado, presente e futuro, espelha-se na amplitude e importância das questões abordadas nesta coletânea.

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