RIO – Instrumento histórico de resistência frente à opressão, o livro não passou incólume pela ditadura militar brasileira. Foi esta a conclusão que chegou Sandra Reimão, doutora em Comunicação e Semiótica e Livre-docência da Universidade de São Paulo (USP), autora do livro Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar (Edusp/Fapesp, 2011). Disposto a cobrir uma lacuna neste campo de pesquisa, a obra de Reimão debruça-se principalmente sobre a censura oficial a livros de ficção, ação dos censores que encontrou resistência por partes dos autores: “Liderando a oposição à censura prévia para livros destacaram-se Jorge Amado e Érico Veríssimo, líderes também de vendagens na época, que declararam publicamente ‘em nenhuma circunstância mandaremos os originais de nossos livros aos censores, nós preferimos parar de publicar no Brasil e só publicar no exterior’”. Nesta entrevista, Reimão fala dos resultados de sua pesquisa, destaca as obras censuradas e opina sobre o contexto dos anos de chumbo em comparação aos dias atuais em que a legislação exige autorização prévia para a publicação de biografias.
Chico de Paula: Professora, a senhora publicou recentemente um livro dedicado ao tema da censura aos livros durante a ditadura militar brasileira. O que a senhora poderia destacar de mais importante em relação aos resultados alcançados pela sua pesquisa?
Sandra Reimão: O livro Repressão e resistência: censura a livros na ditadura militar aborda a censura à cultura e às artes e, especificamente, a livros durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). Destacamos a censura explícita e direta do Estado executada pelo Ministério da Justiça através do Departamento de Censura e Diversões Públicas, DCDP, órgão encarregado da censura às diversões públicas. No capítulo 1, Ditadura Militar e censura a livros no Brasil (1964-1985), traçamos um panorama histórico da atuação censória dos Governos Militares em relação à cultura e às artes e em relação aos livros. A partir do quadro geral traçado nesse trabalho mais panorâmicos, nos detivemos em analisar alguns casos de vetos censórios a textos de ficção de autores brasileiros. O estudo desses atos censórios nos possibilita buscar resgatar alguns traços daquele período histórico e, especialmente, nos possibilita buscar delinear alguns elementos dos mecanismos de censura e da repercussão desta censura no universo da produção da cultura.
C. P.: Quais foram as obras censuradas durante a ditadura militar do Brasil?
S. R.: Em minha pesquisa me concentrei na censura a obras de autores brasileiros. A pesquisa localizou quatro grupos de livros de autores brasileiros que foram censurados: 1) obras de ficção: romances, contos e poesia; 2) livros de não ficção – 18 títulos; 3) peças teatrais vetadas para publicação em livro – 11 casos e 4) cerca de 100 livros eróticos. Entre as obras de ficção vetadas, destacam-se: Feliz ano novo, de Rubem Fonseca, Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, Dez histórias imorais, de Aguinaldo Silva, Em câmara lenta, de Renato Tapajós. Apesar de nas obras ficcionais, listadas acima, censuradas pela ditadura militar a temática sexual ser bastante presente, elas não são obras que possam ser classificadas como eróticas ou pornográficas. O traço que parece ser mais evidente entre estas obras literárias é a filiação a uma certa literatura da violência – violência física e psicológica das prisões e torturas, a impunidade dos criminosos como mecanismo propulsor da violência, violência ensandecida e sem rumo dos marginalizados e excluídos – violências estas que a ditadura militar propiciara ou era incapaz de conter e se esforçava por ocultar. Entre os cerca de 100 livros eróticos-pornográficos vetados durante a ditadura militar, dezoito são de autoria de Cassandra Rios, treze de Adelaide Carrarro, 22 são assinados como Dr. G. Pop, dezessete como Brigitte Bijou e seis como Márcia Fagundes Varella. Adelaide Carrarro e Cassandra Rios foram nos anos 1960 e 1970 campeãs de vendagem. Seus livros, considerados eróticos ou francamente pornográficos eram lidos às escondidas por adolescentes e adultos. Eram livros “fortes” que misturavam política, ‘negociatas’ e sexo, muito sexo. Não nos esqueçamos que parte dos militares via a sexualidade como podendo ser utilizada como ferramenta do “expansionismo comunista”. Exemplos dessa postura foram coletados por Paolo Marconi em A censura política na imprensa brasileira, citemos um: “O sexo é um instrumento usado pelos psicopolíticos para perverter e alienar a personalidade dos indivíduos (…). Daí partem para o descrédito das famílias, dos governos, e passam à degradação da nação” escreveu um tenente-coronel.
“Os 21 anos de ditadura militar deixaram muitas sequelas na sociedade brasileira – uma delas é o não enraizamento dos valores democráticos como sendo essenciais”
C. P.: Como os escritores censurados se comportaram? Aceitaram de forma passiva ou houve algum tipo de resistência?
S. R.: Em 1970 houve a tentativa de se estabelecer a censura prévia para a totalidade dos livros publicados no Brasil. A reação adversa de editores, escritores, intelectuais e associações da sociedade civil foi grande. Liderando a oposição à censura prévia para livros destacaram-se Jorge Amado e Érico Veríssimo, líderes também de vendagens na época, que declararam publicamente “em nenhuma circunstância mandaremos os originais de nossos livros aos censores, nós preferimos parar de publicar no Brasil e só publicar no exterior”. A incisiva reação contra o estabelecimento da censura prévia para livros e publicações em geral levou o governo a recuar e a publicar uma nova Instrução isentado de verificação prévia as publicações e exteriorizações de caráter estritamente filosófico, científico, técnico e didático, bem como as que não versarem sobre temas referentes ao sexo, moralidade pública e bons costumes. Foi um avanço democrático conseguido pelas forças sociais do momento, mas é claro também que os limites para decidir se um texto enfoca ou não, tangencia ou não, temas de moralidade pública, bons costumes ou sexo, são limites bastante móveis e essa mobilidade permitiu que relevantes obras – teóricas, conceituais e ficcionais – fossem alvo de rigorosos atos censórios.
C. P.: Quais são as particularidades que a senhora observa entre o contexto dos anos de chumbo e o contexto atual em que a legislação exige autorização prévia para a publicação de biografias, cuja querela o STF promete resolver?
S. R.: Os 21 anos de ditadura militar deixaram muitas sequelas na sociedade brasileira – uma delas é o não enraizamento dos valores democráticos como sendo essenciais, como sendo valores inegociáveis. É preciso estar atento e vigilante para perceber e coibir atitudes cerceadoras da liberdade de expressão e de opinião como essa que defende a necessidade de autorização do biografado ou de seus familiares para publicação de biografias.
“Não resta dúvida de que o livro de Sandra Reimão traz uma significativa contribuição ao estudo da censura no Brasil após o golpe de 1964, particularmente a livros. Passa a ser uma obra de referência sobre o tema, além de apontar várias possibilidades de pesquisas a partir de trilhas abertas pelos dados e análises apresentados” (Flamarion Maués).