Fazer greve não é fácil. Quem participa corre riscos, passa longos períodos ao relento em assembleias e passeatas, morre de frio ou se torra ao sol, eventualmente tem encontros desagradáveis com a tropa de choque, come mal, dorme mal, convive com a hostilidade de colegas que pensam que greve é coisa de vagabundo, tem medo, sofre com sentimentos de culpa em relação ao trabalho. Trabalhar num local relativamente limpo e confortável, com mesas, cadeiras e banheiro, às vezes até com ar condicionado, creiam, é mais fácil. E no caso de bibliotecários e outros funcionários que têm contato direto com os alunos, é ainda mais complicado, porque a gente conhece as pessoas que precisam do nosso trabalho, vê a decepção nos rostos dos que param em frente a uma porta fechada, mas que, em muitos casos, apesar de tudo, apoiam a nossa luta.

Bombas e balas de borracha para “dialogar” com funcionários e estudantes. Foto: Sindicato dos Trabalhadores da USP

Bombas e balas de borracha para “dialogar” com funcionários e estudantes. Foto: Sindicato dos Trabalhadores da USP

Mas também tem um lado divertido, confesso. Greve não deixa de ser um momento de liberdade; uma das poucas situações em que um trabalhador médio da USP pode sentir que tem alguma importância, que sua voz tem alguma chance de ser ouvida. Também é um momento de solidariedade, de estar junto com pessoas que
fazem todo o tipo de trabalho, do mais sofisticado ao mais humilde, de ouvir histórias que só são contadas entre uma assembleia e outra, de descobrir os mais espantosos segredos. Para muitos funcionários que trabalham no mais absoluto estado de alienação, apenas fazendo o que lhes mandam fazer, a greve é uma oportunidade para ampliar sua visão política e entender um pouco melhor a universidade.

Numa de nossas greves, a Associação dos Docentes promoveu as chamadas aulas-greve, que nada mais eram do que aulas abertas ministradas nos gramados do campus. Foi um grande sucesso. Naquela ocasião alguns professores se deram conta de que havia funcionários naqueles gramados que assistiam a uma aula na universidade pela primeira vez, apensar de terem com muitos anos de casa. Trabalhadores que só conseguem usufruir de atividades acadêmicas na instituição onde trabalham quando estão em greve.

Muita gente no Brasil parece ter horror às greves, como se não fossem um direito do trabalhador garantido pela Constituição e algo totalmente normal no regime democrático. Resquício, talvez, de um pensamento autoritário firmemente enfiado nas cabeças das pessoas pela nossa última ditadura militar e que vem sendo transmitido de pai para filho há muito tempo. Greve é sinal de rebeldia, de desobediência ao sagrado princípio do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Algo errado, portanto.

Existem algumas ideias equivocadas sobre greves amplamente divulgadas pela mídia e facilmente aceitas pela população. Uma das mais populares é a da “manipulação política”, segundo a qual grevistas não passariam de massa de manobra para agremiações políticas com finalidades eleitorais. Greves da USP sempre são acusadas de estarem a serviço de interesses outros, em razão da forte atuação dessas organizações e partidos nos movimentos, mas a coisa não é exatamente assim. Os funcionários da USP, para falar da categoria que conheço, não são tão ingênuos politicamente. Em tantos anos de estrada, já adquirimos maturidade suficiente para reconhecer eventuais tentativas de manipulação e nunca vi funcionários da USP embarcarem numa greve sem terem um motivo bem palpável, diretamente ligado aos seus bolsos ou a questões importantes da Universidade.

Nossos líderes, por sua vez, de bestas não têm nada e sabem que, para não perder a credibilidade, não podem colocar as agendas de suas organizações acima dos interesses dos trabalhadores que representam. Nossas greves têm uma estrutura simples e democrática: o comando de greve, formado por representantes eleitos em cada unidade e pela diretoria do Sindicato, organiza o movimento, mas todas as decisões importantes são tomadas nas assembleias. O comando de greve apresenta propostas nas assembleias, mas qualquer funcionário também pode fazê-lo.

Outro clichê que frequenta bastante as manchetes dos jornais: piquetes são violentos, grevistas são desordeiros e depredam o patrimônio público. Grevistas e seus oponentes costumam ter ideias diferentes sobre o que é violência, desordem e depredação. Os primeiros acham que violência de verdade é assédio moral, desconto ilegal de salário de trabalhador em greve e bala de borracha em manifestante pacífico. Desordem e depredação são o que fazem certos dirigentes de instituições públicas com suaadministração predatória. Diferenças de opinião à parte, vamos a alguns fatos que nem todos conhecem.

Piquetes são ações normais de greve, gostemos ou não. Na USP os piquetes só costumam ser feitos nos locais onde os próprios funcionários pedem, principalmente para aliviar a pressão das chefias sobre os que não querem trabalhar. Fica bem mais difícil perseguir quem aderiu à greve se ninguém (ou quase) entrou no prédio por causa do piquete. É claro que numa situação dessas podem surgir conflitos, agressões verbais e até físicas entre as partes envolvidas, mas ninguém vai fazer piquete para bater nas pessoas, a ideia é apenas impedir a entrada dos que, por vontade própria ou imposição superior, tentam desrespeitar a decisão da maioria. Ah, mas é tão feio, não? Um bando de funcionários mal vestidos acampados em frente à porta, jogando truco e fazendo fogueirinha para se aquecer quando está frio… É, gente, greve não é vernissage em galeria de arte, não dá para ser uma coisa linda, cheirosa e elegante o tempo todo, por mais que a gente se esforce.

Quanto à depredação, o funcionário médio da USP costuma ser radicalmente contra qualquer ação desse tipo. Todos sabem quanto custa, em dinheiro e trabalho, manter um prédio na Universidade, por isso nossas greves não tem histórico de depredações. Os problemas que ocorreram nos últimos anos foram resultado de ocupações do prédio da Reitoria, sobretudo as realizadas pelos estudantes. Numa ocupação é muito difícil controlar a ação de grupos mais exaltados e a entrada de pessoas nem sempre ligadas à Universidade que comparecem nem sempre com as melhores do mundo.

E a desordem? Somos todos uns desordeiros? Bem, não somos. Mas penso que um pouco de desordem ocasional é menos prejudicial do que o excesso de ordem. Uma universidade pulsante, barulhenta e agitada é melhor do que uma sepultada pela disciplina, pelas regras, pela burocracia ordeira e monótona. Questão de gosto.

Há quem eternamente insista que “há outras formas de luta”, sem jamais dizer quais são. Sim, há outras formas de luta, mas nenhuma funciona tão bem quanto uma greve forte e organizada. Há quem defenda que paralisar a Universidade não adianta nada, que seria melhor discutirmos nossos problemas sem parar nossas atividades, já que a USP seria um espaço natural para a reflexão. Certo, então por que a comunidade só acordou de fato para sua crise quando eclodiu a greve? Não deveria ter acontecido um enorme movimento de “discussão” e “reflexão” assim que o reitor anunciou os cortes no orçamento, logo no início do ano? E também há quem pense que nossos salários estão bons, portanto não temos motivo para fazer greve. Bem, se ficarmos cinco anos sem reajuste a gente volta a conversar sobre isso.

Recentemente o diretor da Biblioteca Brasiliana Mindlin, Carlos Guilherme Mota, pediu demissão do cargo em protesto contra a crise e a greve da USP. Sua carta de despedida poderia ser um documento interessante, mas, infelizmente, o professor resolveu incluir no texto críticas bastante deselegantes, para dizer o mínimo, em relação aos bibliotecários da BBM. Mais deselegantes se tornam pelo fato de que os profissionais atingidos têm poucos meios para se defender, enquanto o acusador tem sua carta publicado no jornal O Estado de São Paulo. Além disso, o professor afirma que “bibliotecas não deveriam participar de greves (sic)”. Enquanto bibliotecária e ser humano que precisa trabalhar para viver, discordo dessa visão idealizada de bibliotecas e bibliotecários. Quem quiser se inteirar do assunto, leia o texto do professor no Estadão e meus comentários – também, não muito elegantes, devo confessar – em meu blog.

Nossos salários atuais são resultado de muitos anos de mobilização dos funcionários, cuja organização começou em 1979, durante uma greve que enfrentou o governo de Paulo Maluf. Fizemos greve pela autonomia da USP em relação ao governo do Estado, pela implantação do nosso plano de carreira, pelo aumento do repasse do ICMS às universidades e mais verbas para a educação, contra o decreto que anularia a autonomia universitária.

Lutamos, juntamente com os estudantes e professores e mesmo sem eles, todas as vezes que nossos direitos foram ameaçados. Perdemos algumas vezes, ganhamos outras, mas nossa capacidade de organização cresce a cada movimento. Muitos sacrificaram suas carreiras e até perderam seus empregos nesse processo, definido por Claudionor Brandão, um dos líderes do movimento dos funcionários, como resistência sistemática.

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