RIO – Coordenar uma rede de biblioteca quase nunca é uma tarefa fácil. Imagine se este sistema comportar mais de quarenta bibliotecas em uma das maiores universidades federais do país. É este o desafio enfrentado pela bibliotecária Paula Maria Abrantes Cotta de Mello. Ela coordena o Sistema de Bibliotecas e Informação (SiBI) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), maior universidade federal do Brasil, há 11 anos. Nesta entrevista, concedida nas dependências do Palácio Universitário da Praia Vermelha, no Rio, ela fala das dificuldades em coordenar um sistema tão complexo e extenso, da aquisição de e-books pelas bibliotecas universitárias e do momento político pelo qual o Brasil tem passado.

 

Chico de Paula: Paula, você poderia falar um pouco de sua trajetória acadêmico/profissional para as pessoas lhe conhecerem um pouco mais?
Paula Mello: Para falar da minha história, cumprindo os trâmites tradicionais, vou pelo início. Comecei interessada em fazer Biblioteconomia por ser um curso novo em minha cidade natal, no Rio Grande do Sul. Curiosa pelos caminhos que essa profissão poderia abrir para mim, acabei entrando sem conhecer. Foi um curso muito bom na Fundação Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Acabei me apaixonando pelo trabalho e pelo papel que o bibliotecário desempenha na sociedade. Acabei o curso cheia de ideias e projetos, mas com dois filhos. Inicialmente comecei a trabalhar na Biblioteca Central da FURG, substituindo a chefe da biblioteca nos horários que ela não estava presente. Eu era muito jovem e tinha que assumir grandes responsabilidades, uma vez que era a Biblioteca Central de toda a universidade. Foi uma experiência fantástica, mas curta. Durou um ano porque eu fui para o Rio de Janeiro, cheguei aqui em dezembro de 1979. Iniciei outra fase, diferente e sem vínculos trabalhistas, não tinha condição de prestar um concurso ou fazer um mestrado porque a vida é muito complicada em cidade grande sozinha e com as crianças. Então resolvi investir na nova vida no Rio e fazer cursos sempre que possível; algum trabalho eventual em que fui conhecendo outros profissionais. Não fiquei me sentindo defasada ou parada. Em 1984 ingressei no mestrado, nos primeiros meses sem vínculo, depois na universidade onde comecei com um projeto ambicioso de criar uma biblioteca para o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Então eu já tinha feito os créditos do mestrado e tranquei. Fui e me dediquei de cabeça a esse projeto de implantar a biblioteca. Foi uma maravilha, um projeto belíssimo que começamos do primeiro livro, do primeiro lápis. Cada vez que chegava uma coisa nova era uma festa na biblioteca. Tenho amigos lá até hoje. Fiquei nesse projeto durante cinco anos quando fui convidada a assumir a Divisão de Processamento Técnico do Sistema de Bibliotecas e Informações da Universidade Federal do Rio de Janeiro (SiBI/UFRJ). A missão nessa época era informatizar a aquisição e eu ia acompanhar a informatização da biblioteca da UFRJ. Nessa época eram as [bibliotecas] centrais que estavam no sistema antigo e algumas setoriais, dentre elas a do IPPUR [Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional], já que ia começar do zero, começava com o que tinha de mais moderno na época que era os sistemas de catalogação. Havia terminais que usávamos para entrada de dados, como para os OPACs (catálogos de acesso público online) da época. Somos até então pioneiros na tecnologia da informação na área de bibliotecas universitárias no Brasil. Em seguida chegou o computador, o aprendizado foi imediato e era necessário. Informatizamos o sistema de aquisição: temos uma aquisição centralizada com uma alimentação descentralizada que funciona até hoje. Houve algumas mudanças, mas funciona até hoje. Nessa função eu fiquei dez anos. Nessa ocasião a Universidade estava vivendo um momento muito difícil porque ela estava sendo dirigida por um reitor que não tinha sido eleito pela comunidade e a forma como ele entrou não foi democrática. Eu discordava de uma série de coisas e era muito amiga da diretora, a então professora Mariza Russo. E conversando com ela pedi liberação do cargo porque eu teria que aceitar uma série de coisas que não concordo. Então fui para a Biblioteca da [curso de] Economia e lá eu fiquei dentro do que era oferecido para mim como oportunidade, basicamente no Aleph [Sistema de catalogação utilizado pela UFRJ]. Eu sou uma pessoa muito diversificada, tenho que ter múltiplas funções, preciso estar inventando uma coisa nova, gosto de mobilizar as pessoas que trabalham comigo. Até consegui implantar umas coisas novas, como a primeira analítica de autores. Comecei na Economia, com autores da casa. Toda vez que um professor da casa precisava de um capítulo de um livro, um artigo de revista, nós fazíamos a catalogação analítica no Aleph. Em paralelo eu era bibliotecária do Sistema. Em virtude de pouco pessoal, eu era a única que conhecia o Aleph profundamente. Hoje sei que não conhecia nada, mas na época era um conhecimento necessário e suficiente. Eu era muito requisitada no Núcleo de Computação Eletrônica (NCE) para as questões voltadas as melhorias e modernização do Aleph. Na Economia comecei a ficar entediada, quando sou convidada para fazer uma entrevista na Documentar [empresa que trabalha com gestão de documentos] e assumir um projeto de gerência de um grupo de bibliotecários na Petrobrás. Pedi licença prêmio e sai da universidade, fiquei seis meses trabalhando na Petrobrás e foi uma experiência maravilhosa porque pela primeira vez eu consegui juntar vontade, conhecimento e infraestrutura. Tudo que queria implementar era feito, assim pude exercitar a gerência mesmo, toda parte relacionada a pessoas, a parte relacionada a segurança, a capacitação, a produtividade. Quando eu cheguei comecei a observar o ambiente de trabalho, as pessoas eram desmotivadas, tinha pessoas em funções erradas. Comecei a mudar a disposição das pessoas para fazer um fluxo. A produção aumentou e hoje acompanho, as pessoas me ligam, tenho muita satisfação em ter feito esse trabalho. Nessa ocasião quando eu voltei não fui mais para a Economia, fui para o NCE e fiquei lá direto com a Maria Irene [então gerente de informática do ASI/NCE] dando suporte de bibliotecário a equipe de analíticas do Aleph. Fiquei quase um ano quando fui convidada para assumir os SiBI.

DSC09697C. P.: Atualmente você está fazendo doutorado?
P. M.: É. Estou no SiBI desde 2003 quando tinha passado por duas fases importantes. A primeira com a Dolores [Rodriguez Perez, primeira coordenadora do SiBI] com a implantação, definição do que é sistema, definição do perfil das bibliotecas, o que era pequena, média e grande, serviços, produtos, formação de quadro pessoal, enfim, toda aquela parte até quando me chamaram para montar o sistema de aquisição e a informatização. Depois veio a Mariza Russo e foi a base mais de produtividade de colocar registros na Minerva [que é o catalogo da UFRJ]. Entre a Dolores e a Mariza foi quando nós compramos o Aleph em 1997. Nós mudamos de sistema e essa fase é muito importante na história da biblioteca e eu vivi um pouco cada fase desde 1986. Então estou aqui como coordenadora e a Mariza foi convidada a ser coordenadora da implantação do Curso de Biblioteconomia [e Gestão de Unidades de Informação da UFRJ]. Agora a outra parte era fazer o SiBI ser conhecido e fortalecido dentro da Universidade, melhorar a estrutura de bibliotecas, modernizar. Essa tem sido a linha do SiBI desde então. No terceiro ano da minha gestão comecei a trabalhar com a equipe de uma forma de delegar competências para eu poder em algum momento ingressar no doutorado [em História das ciências e das técnicas e epistemologia – HCTE/UFRJ] que tinha deixado de lado porque não tinha como conciliar duas atividades que exigem tanto. Entrei para o doutorado no final de 2010 e iniciei em 2011 e devo finalizar agora.

C. P.: Você coordena o sistema de bibliotecas da maior universidade federal do país. Quais são as dificuldades para coordenar um sistema desse tamanho que tem hoje mais de 40 bibliotecas?
P. M.: Eu diria que as principais dificuldades são em relação à operacionalização do sistema de compras em virtude das novas exigências da legislação, trâmites burocráticos; não em relação à restrição de verbas; isso não é mais um problema durante muitos anos, temos um bom orçamento, mais é preciso executar e hoje diria que é a dificuldade número um. A dificuldade número dois seria a questão de pessoas; elas são muito diferentes e nós temos muitos profissionais para administrar. Eventualmente sempre temos algum problema nas equipes, mas buscamos contornar e conversar com as pessoas, fazer negociação, se possível transferir para outras bibliotecas. Às vezes a pessoa é muito boa, mas não se adaptou no lugar e fica parecendo que ela não é um bom profissional, quando na verdade ela vai para outro lugar adequado ela brilha e cresce. Então procuramos essas oportunidades, às vezes acertamos e em outras erramos, mas esse é o nosso objetivo.

C. P.: Uma das questões que as bibliotecas universitárias têm enfrentado é a implementação e utilização dos livros eletrônicos. Como é feito esse processo aqui na UFRJ?
P. M.: A decisão de comprar livros eletrônicos partiu do SiBI e não da UFRJ. Em 2007 nós tomamos essa iniciativa como um teste e para ser pró-ativo mesmo. Os livros eletrônicos estão no mercado e a UFRJ é uma das principais universidades federais, tem um grande número de alunos de graduação e pós-graduação, e seria um laboratório fantástico para avaliarmos a importância e a relevância do livro eletrônico no acervo. Isso sem contar com o que já sabemos: que economiza espaço, é multiusuário, amplia o uso da informação dentro da universidade. Sempre compramos com direito perene, os direitos são nossos. Então passado quase um ano e meio nós fizemos a primeira avaliação e para o tempo que havia de distribuição do livro a avaliação foi excelente. Inclusive os acessos negados, havia interesse de buscar os livros e eram assinaturas de outros anos que nós não tínhamos ainda, então isso provou que havia demanda na universidade. Diante disso, buscamos manter a coleção desse primeiro editor atualizada e já implementamos outras e também há iniciativas individuais de algumas bibliotecas que assinam com outros recursos, mas que assinam com a condição de a UFRJ toda ser usuária. O SiBI coordena essa iniciativa, nosso padrão hoje é ter bibliotecas híbridas. Temos mais de dez mil livros eletrônicos em uso na universidade e a tendência é crescer cada vez mais, mas na realidade carioca e nacional ainda não dá para dizer que uma universidade pública pode ter uma biblioteca que atenda a graduação totalmente eletrônica, ainda não é possível. As questões de direitos autorais, por exemplo, são os grandes impedimentos, mas estamos caminhando para algumas mudanças. Eu acredito que em dez anos houve uma mudança muito grande. O que vejo para o futuro é um sentimento grande de mobilidade, cada vez mais os conteúdos digitais serão acessíveis por objetos móveis como celulares, tablets e o que mais tem de moderno. As bibliotecas se transformando em lugares agradáveis que você possa estudar ou encontrar alguém, para ver o acervo impresso, para consultar o acervo eletrônico usando a rede da biblioteca. A biblioteca tem que ser o apoio e o suporte, sem deixar de lado o ensino, a pesquisa e a extensão.

DSC09721C. P.: Outro aspecto superimportante é a questão do reconhecimento profissional, não só de sua carreira, mas o reconhecimento das próprias bibliotecas. Você acredita que a UFRJ de uma forma particular e as universidades brasileiras de um modo geral tem reconhecido esse profissional e as bibliotecas como espaço importante dentro das instituições?
P. M.: Olha, mais do que nunca. Já houve períodos bem difíceis em que a biblioteca era quase que desprezada. Hoje a biblioteca está no quadro das avaliações tanto da pós-graduação, como da graduação. Mais do que isso, ela é um espaço que ninguém tira mais de dentro do campus universitário. É uma escassez de espaço para sala de aula, mas a biblioteca está lá e sempre esteve, e além de ser um indicador de avaliação faz com que os dirigentes olhem para as bibliotecas com outros olhos. Se a biblioteca estiver bem, se estiver boa, bem dotada e cuidada, bem frequentada, ela vai ganhar na avaliação. Algumas são por amor, por reconhecer o valor social da biblioteca, mas a maioria agora desperta mais. Por isso vamos ter uma boa biblioteca, com bons profissionais, porque nossa avaliação vai melhorar. É bom que a gente sai ganhando. Eu diria que de 2003 em diante a biblioteca ganhou outro status dentro da UFRJ, o SiBI faz parte do grupo da alta direção da universidade, participa das decisões, tem orçamento determinado que pedimos a compra de equipamentos para as bibliotecas. Esse trabalho que vem desde a Dolores e foi construído aos poucos fez com que o SiBI hoje seja uma entidade dentro da UFRJ respeitada e até mesmo copiada, ampliando o sistema de museus à luz do SiBI.

C. P.: Esse aspecto de valorização você acredita que tem a ver com a questão de um governo mais amadurecido no Brasil ou é um processo natural?
P. M.: Acredito que seja uma evolução de políticas culturais.

C. P.: Para finalizar nossa entrevista ,vou fazer uma pergunta mais de caráter de cidadania, buscando um aspecto de cidadania, digamos assim, do que necessariamente um aspecto de profissional bibliotecário. Qual a sua percepção desse momento que o Brasil está vivendo recentemente? Como cidadã, qual a sua visão desse momento que o Brasil está passando?
P. M.: É um momento bem complicado. Está indefinido, não sabemos o que pode vir acontecer. É importante o acordar do povo. A impressão de que brasileiro era um povo muito acomodado em relação aos problemas, aos impostos, tudo é um peso, é difícil viver, está muito caro viver. Você quer retorno desses investimentos sofridos que as famílias passam e todo trabalhador passa. Então esse acordar é importante agora. As complicações que vemos hoje na mídia é muito complexo para analisar porque nunca se sabe o que tem por trás dessas organizações, são múltiplas, são diversas. Não é nenhum grupo que foi a rua e protestou, são vários grupos, várias frentes que fazem esse movimento que realmente acho importante, mas saber reivindicar e ter a esperança de algum retorno.

 

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