Há quase 130 anos era abolida a escravatura oficialmente em todo território brasileiro. A pessoa negra passou a gozar de liberdade chancelada pelo Estado, diferentemente das que vinham através de compras pelos cativos, ou por algum obséquio de senhores, algo que era raro, devido à mentalidade escravocatra que dominava a cena nacional.
Desde o dia 13 de maio de 1888, o ser negro não era mais escravo no Brasil, mas a sua condição de novo integrante livre na sociedade, não condiz com a de uma pessoa livre e não negra em nosso país.
Muita gente diz que todos são tratados da mesma forma aqui no Brasil; todos desde que não tenha na pela a cor (ou as cores) que já figura(m) no imaginário social, como a cor de potenciais marginais, malandros, pessoas que gostam da vida fácil, vadios, preguiçosos, amantes das pândegas…
Ser negro no Brasil é levar na pele o estigma social; é correr das porradas da vida, mesmo estando parado no ponto de ônibus esperando a condução; é olhar para baixo com medo de ser questionado, quando passa defronte da autoridade policial; é saber que todos os olhos humanos ou das máquinas, estarão sobre si ao entrar em uma loja, em um shopping, num restaurante mais exigente, no aeroporto…
A lógica da “Casa Grande” é que vivemos em uma nação que tem harmonia entre as diferentes expressões raciais existentes, baseado em uma convivência de tolerância, deferente de alguns regimes implantados em outros países, como a política de segregação estadunidense e o apartheid na África do Sul.
Todavia, o fato de não se ter havido no Brasil uma política estatal que corroborasse com a segregação de pessoas negras, não faz dessa nação um local livre dos preconceitos que a população não branca sofre diariamente em todos os cantos deste país.
Mito da igualdade racial
Quando se fala que a pessoa negra sofre preconceito no Brasil, muitos se levantam para dizer que isso é uma inverdade; que no Brasil as “raças” vivem em plena harmonia; que pretos, brancos e índios vivem bem por aqui; que no fim das contas, todo mundo tem sangue de negro, de branco e de índio no Brasil; tudo isso fica muito agradável no discurso, mas não é essa a realidade vivida por quem tem a pele escurecida pela melanina.
Seja nos grandes centros ou no meio rural, as pessoas não brancas são vistas com a mesma desconfiança de sempre. Nas zonas urbanas a forma de tratá-los ainda é mais violenta e latente. As práticas empregadas pelo Estado para lidar com esta população resulta quase sempre em carnificina, principalmente se a pessoa negra for homem, entre 15 e 29 anos, e morador de áreas esquecidas pela poder público e pela sociedade dita organizada.
Em pesquisa recente sobre o índice de violência no país, foram colhidos alguns dados que corroboram com o que fora supracitado: 71% dos assassinatos nos grandes centros são pessoas negras, homens (em sua maioria), em idade economicamente ativa e morador das áreas periféricas. Atrevo-me a dizer, sem medo de errar, que há uma política escusa de extermínio da população negra no Brasil!
Quando nos deparamos com a realidade cara a cara, tal como ela é, fica difícil acreditar que temos os mesmos direitos que os não negros; que somos tratados de forma igualitária pelo Estado brasileiro; que temos condições de sermos o que quisermos ser na vida, basta apenas nos esforçarmos… mentira!
A população negra que fora liberta dos grilhões da escravização no século XIX, não teve oportunidade de estudar e se preparar para as “provas da vida”; foram negadas a essa gigantesca população as condições dignas de moradia, saúde, bem estar social; a presença de pessoas negras em determinados lugares das cidades era vetada por determinação de donos de estabelecimentos, e a recusa em continuar a freqüentar tais lugares com pretos presentes, dos antigos e abastados frequentadores.
Ser pessoa negra no Brasil é sinônimo de pobreza, miséria, mendicância. Há contra a população negra dois estigmas sociais mais claros: o racismo e o preconceito devido à condição social. Como não houve meios de morar nas áreas nobres das cidades, negros e negras foram subindo as encostas, erguendo palafitas sobre mangues e riachos, foram expandindo os limites das cidades, para que pudessem ter um teto onde descansar depois da lida.
Na ausência de bons e dignos empregos, os negros começaram a fazer comércio nas praças da vida, negociando tudo o que podiam; as negras colocavam os seus dotes culinários aflorados, e enchiam às praças, calçadas, ruas das cidades com quitutes de encher os olhos e as bocas. Era preciso se virar, vencer as dificuldade, e assim a maioria da população negra o fez, sem ajuda alguma do Estado brasileiro, que por mais de três séculos soube aproveitar do suor e sangue negro que nutriram esta nação!
Revendo um pouco da história oficial (para não dizerem que é invenção de negro), e observando a realidade, fico a pensar em como são desonestos os que dizem que negros amam fazer um “mimimi’ nas redes; que amam uma vitimização para serem vistos como coitadinhos. Me dói ao ver que pessoas que se dizem bem intencionadas, amantes da justiça e do bem social, se opõem às políticas de cotas para ingresso nas universidades públicas deste país.
Como podem vir em público dizendo que é só o negro se esforçar que ele consegue uma vaga, se a educação básica na rede pública é a o que se conhece?! Defendem a meritocracia em um país que fomenta o ensino privado desde as primeiras séries, mas deixa o ensino público em total sucata.
Meses atrás, o filho de um piloto brasileiro que atuava em uma categoria automobilística falou com o pai pelo rádio de comunicação da equipe, felicitando a esse pela corrida e pelo o que fizera na carreira. O menino falava com voz tenra, para que não houvesse dúvidas de que não passava de uma criança, no máximo um pré-adolescente. Mas, o que tem demais em um filho felicitar o pai pelo rádio comunicador?! Nada, absolutamente!
O que me intrigou foi o idioma que o jovem falou; era um inglês fluente, sem pestanejar na pronuncia. O que se tira deste episódio: graças ao investimento familiar, este menino tem uma base educacional fora dos padrões nacional, algo que dará para ele certas vantagens quando o mesmo for para o mercado de trabalho. A culpa é do menino; do pai dele? Não, a culpa é do sistema, que cerca alguns de privilégios, em detrimentos da maior parte da população.
Os que vivem dos privilégios sociais jamais abriram mão da sua posição. Fica fácil para um homem branco dizer que consegui uma vaga em uma multinacional, se ele teve, desde a educação básica, tudo que precisava para hoje poder concorrer a essa vaga com tudo o que a vaga deseja.
É realmente confortável para uma mulher branca (que também sofre os problemas da misogenia, mas não como as negras), dizer que na sua juventude estudou muito para ser médica, advogada, engenheira, o que for, se nessa mesma época ela não precisou acordar cedo, levar os irmãos para escola, enfrentar casa de outras pessoas como empregada doméstica, ir para a escola
à noite, chegar em casa, ajudar a mãe nos afazeres domésticos, ter uma péssima noite de sono por conta de conflitos armados entre marginais…
O homem negro, diferentemente do homem branco, precisa provar para si, para a sua família, seus colegas de trabalho, o policial da esquina, o dono da loja, a senhora que anda na calçada, o motorista de ônibus, os frequentadores da praia, o agente de trânsito, o líder religioso, a professora da escola, o pipoqueiro da praça, para a sociedade em geral, que ele não é marginal, que na mochila dele não tem nada que o leve à prisão, que ele está correndo para não perder o ônibus, e não por que roubou alguém!
Quando uma pessoa negra diz em uma palestra que seus filhos têm a cor que fará com que pessoas mudem de calçada, ela fala de uma realidade vivida por 51% da população do Brasil; quando esta mesma pessoa é ridicularizada por um diretor de empresa, por um secretário municipal de Educação, e é achincalhada por internautas, percebe-se que não há a intenção de abrir mãos dos privilégios.
Lugar de fala
O problema não está em não aceitar o que foi dito pela estimada Taís Araujo, mas a falta de empatia para entender o que ela estava dizendo. Não se tentou conversar sobre o assunto, abrir um diálogo em que a população brasileira pudesse se ver como que em um espelho, não! Optou-se em fazer o que sempre se fez, ou seja: desacreditar a fala da pessoa, afirmando que racismo no Brasil não existe.
É preciso respeitar o lugar de fala da pessoa. Um homem pode falar sobre a importância do feminismo, mas ele não pode falar pela mulher, que é a vítima primeira do machismo; uma mulher branca pode falar sobre a solidão da mulher negra, mas não pode falar por essa, haja vista que o sofrimento causado pela solidão que acomete muitas mulheres negras é sentido apenas por elas. Garantir o direito de fala de quem vive na exclusão social é dar voz e vez a quem sempre foi silenciado e preterido.
Se hoje, em pleno século XXI, se denuncia o racismo sistêmico que há no Brasil, é por que as coisas não mudaram, pelo contrário, tende a piorar com a onda conservadora que assola o país, a começar pelas instituições consolidadas, que sempre foram lugares de privilegiados, que nunca se preocuparam com a situação da população negra. Enquanto a sociedade brasileira não entender que o debate sobre racismo e preconceito precisa entrar na pauta de reivindicações, continuaremos a falar, a escrever, a denunciar. Vidas negras têm valor, e não vamos no acovardar!
Estamos fartos de sermos tratados como sub humanos, pessoas de classe e raça inferiores. Chega de ouvir coisas do tipo: “você nem parece ser negro, é tão inteligente”, “e aí moreno, tudo bem?!”, “olha que mulata linda aquela”, “por que você quer fazer outra faculdade, mestrado e doutorado, se você pode ser pagodeiro?!”, “mas a sua pele não é tão escura assim, logo você não é tão negro”, “nossa, que moreninha de traços finos”, “tá certo que você se ache negro, mas a sua alma é branca!”, “em outros tempos pessoas como você não iam muito longe nos estudos”, “vai querer mudar o mundo com essas suas ideias de que negro sofre preconceito?”, “você deve ter um fogo na cama, né?!”… Isso não é e nunca foi elogio!
Enquanto existirem pessoas negras; enquanto houver esperança de dias melhores; enquanto pairar sobre nós a força que acompanhou os nossos antepassados, estaremos na luta, denunciando de peito aberto, reivindicando o que é nosso por direito, ingressando em empresas, programas de pós-graduação e afins, sem sermos pulsilânimes. “Se não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir!” Racistas, não passarão!!!