“É morador, é morador”, foi o que apenas gritaram os jovens, Wilton, Wesley, Cleiton, Carlos Eduardo e Roberto enquanto os policiais dispararam 111 tiros no carro que estavam, em Costa Barros, RJ, no dia 28 de novembro de 2015.
“Moço, socorre meu esposo”. “Eles ficaram de deboche”, disse Luciana Nogueira ao sair correndo enquanto o carro do seu marido, Evaldo Rosa, estava sendo fuzilado com mais de 80 tiros durante operação do Exército, em Guadalupe, Zona Norte do Rio, no dia 07 de abril de 2019.
“Tô aqui, pelo amor de Deus”, disse João Pedro minutos antes de ser atingido por um tiro de fuzil, dentro de casa, no Salgueiro, em São Gonçalo, RJ, no dia 18 de maio de 2020. A casa em que o jovem estava foi alvejada com 72 tiros.
“Por favor, não consigo respirar. Eles vão me matar”, foram as últimas palavras de George Floyd após ser assassinado depois que um policial pressionou o seu pescoço com os joelhos por mais de oito minutos, em 25 de maio de 2020, em Minneapolis.
“Se fosse eu, meu rosto estaria estampado na TV”, disse Mirtes Renata de Souza, mãe do menino, Miguel, de 05 anos, que caiu do 9º andar de um prédio em Recife, no dia 02 de junho de 2020, após ser deixado aos cuidados de Sari Corte Real, patroa de sua mãe.
O que os casos acima têm em comum? Podemos enumerar aqui diversos motivos e fatos para responder essa pergunta, mas o que mais chamou minha atenção nas semelhanças presentes em cada situação foi o racismo estrutural e a indiferença.
A sociedade brasileira é formada em sua maioria por negros, eles são 56% da população, mas mesmo sendo maioria, ainda continuam sem ocupar e ter representatividade em alguns setores da sociedade. O primeiro negro a chegar à presidência do Supremo Tribunal Federal ocorreu somente há sete anos, quando Joaquim Barbosa assumiu a cadeira, em 25 de junho de 2003.
A referida conquista se trata de um fato isolado, uma vez que na outra ponta, os negros ainda são as principais vítimas e alvos de chacinas, assassinatos e violência policial. Segundo os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 290 pessoas foram mortas entre março e abril deste ano por agentes do Estado. Mesmo em um cenário de pandemia e isolamento social tivemos um aumento de 44 assassinatos se compararmos com os dados no mesmo período de 2019. A polícia dos Estados Unidos matou o total de 1.099 pessoas em 2019. Desse total, 259 eram negras. No Brasil, a polícia matou quase seis vezes mais vítimas, um total de 5.084 até o ano passado. Do total, 75% (4.553) eram negros.
Em seu livro, “O que é racismo estrutural?”, o professor e advogado Silvio Almeida aponta que em uma sociedade em que o racismo está impregnado no cotidiano, as instituições que não tratarem de maneira ativa e como um problema de desigualdade racial irão reproduzir as práticas racistas já tidas como “normais” e naturalizadas.
Com o acirramento das questões raciais nos Estados Unidos em decorrência do assassinato de George Floyd, foi possível observar uma postura de construção de diálogo por parte de alguns policiais americanos com os manifestantes. Através de vídeos que circularam na Internet, foi possível assistir policiais se ajoelhando e procurando acompanhar os atos de forma a apaziguar os ânimos. Mas por outro lado, neste 05 de junho, a os policiais mudaram de postura e casos de excessos foram registrados. O próprio discurso de Donald Trump é o de dividir e fomentar o ódio.
Situação bem parecida com o Brasil, a postura da polícia é sempre a violência como resposta e a impunidade corrobora esse tipo de comportamento. Os próprios representantes políticos defendem esse tipo de postura, não podemos esquecer da fala de Wilson Witzel: “a polícia vai mirar na cabecinha e… fogo”.
O descaso é o que condena e a estupidez o que destrói.
A indiferença é outra questão muito presente no seio das instituições e da sociedade brasileira. O exercício de se colocar no lugar do outro, de entender a dor e o respeito estão cada vez mais banalizados. Basta olhar a morosidade da justiça brasileira em julgar os excessos e atrocidades cometidas por agentes do Estado. Já se passaram vinte dias e não temos nenhuma resposta quanto o esclarecimento do caso do João Pedro e um ano depois, a morte do músico Evaldo Rosa ainda continua sendo apurada.
As declarações de Luisa Nunes, dita influencer – nome dado para definir quem se diz com a capacidade de ditar tendências – revela uma naturalização do racismo e um profundo desconhecimento da história brasileira. Afirmar que o racismo é algo natural é reafirmar uma estupidez sem tamanho. É ir contra ao que Silvio Almeida define como: “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” como que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural”.
A indiferença de Sari Corte Real no caso do menino Miguel mostra o quanto a questão racial e a dependência econômica ditam as regras. Mesmo com o patrão, Sergio Hacker, apresentando resultado positivo para Covid-19, Mirtes Renata não foi dispensada e continuou trabalhando. Com a pandemia as creches estão fechadas, o que obrigou Mirtes a levar seu filho para o trabalho. Será mesmo que Sari Corte não tinha condições de dispensar Mirtes? Só para constar, ela pagou R$ 20 mil pela fiança.
O Brasil continua. Não parou. Segue adormecido. O presidente da Fundação Palmares chama movimento negro de “escória maldita”, o mito da democracia racial segue a todo vapor e continuamos a esperar mais uma atrocidade, chacina… só no dia 05 de junho a plataforma fogo cruzado registrou 86 tiroteios no Rio de Janeiro. A primeira vítima oficial da Covid-19 no Rio de Janeiro foi uma negra, a diarista Cleonice Gonçalves, de 63 anos, no dia 17 de março de 2020.