Você está acostumada(o) a ler, ouvir e usar esta expressão assim: “pernas para que te quero”, no sentido de sair correndo de um perigo. Certo? Então, peguei emprestada a expressão para anunciar também um perigo, muito real, muito em voga, ainda: a ignorância, um mal histórico que acomete seres humanos, únicos que leem no reino animal no planeta Terra. A palavra humano vem de húmus, que é também raiz da palavra humildade. Humús significa terra. Nossa origem. Nosso útero.

Ser humano é ter a humildade de saber que não sabemos, e para saber precisamos aprender e para aprender precisamos, numa sociedade letrada, aprender a ler. Ninguém nasce sabendo e nem gostando de ler. Ler é uma capacidade que não é natural no ser humano. Mas nosso cérebro super potente desenvolveu a plasticidade necessária para apropriar-se dessa tecnologia, a escrita, desenvolvida há cerca de 7 mil anos pelos Sumérios. Tratei deste tema no artigo publicado aqui na Biblioo: Devo a leitora que sou às pessoas que me indicaram livros e leituras. Ou seja: fazemos uso de uma tecnologia ancestral, o cérebro, para dar conta de uma tecnologia mais recente, a escrita.

Fazendo check list:

  • Cérebro 😉
  • Educadoras(es) leitoras(es) / Bibliotecárias(os) leitoras(es) / Famílias leitoras;
  • Livros, assegurada a bibliodiversidade;
  • Práticas leitoras diversificadas;
  • Bibliotecas para acessar livros e leituras gratuitamente: escolares, públicas e comunitárias;
  • Livrarias para comprar livros livremente;
  • Internet e suportes digitais para ler, adquirir livros, conversar sobre leituras, participar de clubes virtuais de leituras, realizar e participar de cursos de formação leitora etc. etc. etc.

Cérebro garantido como parte integrante do corpo onde habita, ou seja, todos os seres humanos, é preciso assegurar os meios físicos e virtuais para a formação leitora, todos os quais – lares, escolas, bibliotecas etc. – têm um objeto de necessidade em comum: o LIVRO.

Pois bem, num país colonizado por portugueses, impedido de realizar qualquer tipo de impressão por ordem de el rei , a primeira biblioteca brasileira surge exatamente com a chegada da corte de D. João em 1808, fugindo da fúria de Napoleão Bonaparte, por não ter aderido ao bloqueio comercial imposto contra a Inglaterra. Esse assalto histórico, conjugado com uma ideia de educação que desde sempre excluía a maioria da população e totalmente interditada à população negra escravizada, promoveu um atraso que, somado a mais alguns séculos de descaso da gestão pública, fez com que chegássemos aqui onde estamos: um déficit fabuloso de letramento: o analfabetismo funcional atinge 30% da população brasileira entre 15 e 64 anos. E apenas 12% da população brasileira é plenamente proficiente.

Outro dado igualmente alarmante é que apesar da grande expansão de matrículas nas escolas, tanto da educação básica, quanto nas universidades, encontramos baixo índice de estudantes com proficiência: “7 em cada 10 ainda são analfabetos funcionais e apenas 1% pode ser considerado proficiente. No Ensino Superior, onde, em tese, todos os estudantes deveriam ter alto nível de alfabetismo para exercer uma vida acadêmica plena, ainda é pequena a proporção dos que atingem a proficiência: apenas 34%”.

Bem/well/ora pois, era de se esperar que em um País com estes indicadores ocorreria altíssima focalização em ações governamentais promotoras da leitura e escrita de qualidade para todas(os). Só que não!!! Estamos a anos luz da universalização das bibliotecas em escolas, por exemplo, que é o lugar de cotidiano encontro com livros, leituras, leitoras(es) e práticas leitoras. Em similar penúria estão as bibliotecas públicas e as bibliotecas comunitárias, que realizam um trabalho corajoso, fabuloso e de alto impacto social, como revela a pesquisa O Brasil que lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores.

Uma proposta recente do atual governo para a reforma tributária contraria um benefício assegurado pela Constituição de 1988, que veda a cobrança de imposto sobre o livro, somada à eliminação do PIS/Cofins em 2004 para a cadeia do livro – editores, livreiros e distribuidores – na gestão do presidente Lula. Isso significa que passará a incidir sobre o livro a alíquota de 12%, encarecendo o livro seja para as compras governamentais – que pode impactar negativamente ainda mais as compras de acervo para as bibliotecas – seja para o consumo individual.

Sugiro a leitura do excelente artigo do Chico de Paula, que traz importantes reflexões sobre o tema e seus impactos: Por que, afinal de contas, o governo deseja cobrar impostos sobre o livro?. No manifesto da Rede Leitura e Escrita de Qualidade para Todos, que integra diversas organizações da sociedade civil, profissionais, pesquisadoras(es),  editores,  bibliotecárias, autoras(es) e representantes do setor público e da academia, é possível encontrar múltiplas informações sobre o impacto negativo que a taxação de 12% promoverá. Destaco algumas:

  • Joga por terra o argumento do governo de que a desoneração interessa apenas à classe média.

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2019-2020), realizada pelo IPL (Instituto Pró-  Livro), em parceria com o Itaú Cultural e aplicada pelo IBOPE Inteligência, indica que       existem hoje cerca de 27 milhões de brasileiros nas classes C, D e E que são consumidores de livros. E a elevação de preços deve impactar tanto a indústria, como o             acesso ao livro e, em consequência, piorar os indicadores de leitura – que desde 2007    mantém um patamar em torno de 50% de leitores/não leitores. (Instituto Pro-Livro)

  • Revela a ampliação do fosso entre quem pode e quem não pode pagar por livros e o impacto negativo no alfabetismo funcional

“Em suas 10 edições, o Inaf (Indicador de Alfabetismo Funcional) mostra a importância da leitura de livros. Em especial, chama a atenção o interesse pela leitura entre as pessoas alfabetizadas em nível elementar – equivalentes a 34% da população na faixa etária acompanhada pelo indicador e que ainda demonstram importantes limitações para compreender e interpretar textos. Para essas pessoas, ler é uma oportunidade de aprimorar as habilidades de letramento e ampliar suas oportunidades de desenvolvimento, pessoal ou profissional. Nesse grupo, 56% têm renda familiar de até dois salários mínimos -, e o aumento do preço dos livros pode se constituir em uma barreira concreta para a continuidade desses avanços” (Conhecimento Social)

  • Atinge em cheio a mobilização da sociedade civil pela garantia do direito à leitura para a atual geração de brasileiras(os)

“Trata-se de um golpe contra a democracia e a cultura. A proposta coloca em risco o esforço feito por bibliotecas comunitárias, que têm conseguido alterar as estatísticas de educação e de leitura nos territórios em que estão inseridas, como demonstra a pesquisa O Brasil que lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores. Livros mais caros podem impactar a realização de importantes festivais literários, como os que têm sido realizados nas periferias de diferentes cidades brasileiras, como a FELIZ (Zona Sul de SP), a FLUP (RJ), a FRICT e a de São Miguel Paulista (ambas na Zona Leste de SP). Essas literaturas têm nos proporcionado uma discussão crítica de mundo. É isso que a taxação dos livros procura atacar” – Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário) e Rede LiteraSampa/RNBC (Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias).

“O livro me abria caminhos, me ensinava a escolher o destino”, escreveu o poeta Bartolomeu Campos de Queirós.

 Evitar retrocessos é papel de toda a sociedade.

Caso você, como eu e tantas outras pessoas e organizações, vê a asfixia generalizada que este aumento certamente promoverá na já combalida garantia do direito democrático aos livros e às leituras, tem aqui duas formas de se manifestar:

Toda política pública deve convergir para o acesso democrático aos livros e às práticas leitoras, o que significa investir na universalização e no fortalecimento de bibliotecas em escolas, preferencialmente abertas à comunidade, bibliotecas públicas e bibliotecas comunitárias atuando em rede. Deve igualmente atuar para que a bibliodiversidade seja garantida e que livros sejam acessíveis à toda a população, com especial atenção à população de baixa renda. Todas e todos devem ter robusta formação leitora para assegurar plena autonomia na escolha de livros.

Escolher também se aprende, assim como competência e gosto se refinam com o tempo. Deve também fomentar o surgimento de novas autoras e novos autores, bem como apoiar a economia do livro, como faz em outros setores da economia, para a existência de pequenas e médias editoras e livrarias, visando assegurar bibliodiversidade e amplo acesso Brasil adentro. Ou seja, a taxação dos livros proposta pelo atual governo vai na contramão de garantir tudo o que a política pública deve garantir em um país já tão desigual e onde a batalha contra o analfabetismo funcional exige focalização extrema.

Manutenção da desoneração do livro com responsabilidade e compromisso social é o que de fato precisamos. E isto, inclusive, passa por retomar o debate sobre a criação do Fundo Pro-Leitura, idealizado para financiar programas de incentivo à leitura, tema do PL 1.321/11, desde 2017 estacionado na Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados.

Nos idos da década passada, o debate passou pela destinação de 1% da receita gerada pela cadeia produtiva do livro, como contrapartida em função da desoneração do PIS/Cofins de 2004, como uma das fontes de recurso para compor o Fundo Pro-Leitura. Não sou a favor de generalizações e percentuais de contribuição devem ser de acordo com a possibilidade de cada integrante da cadeia produtiva do livro, pois o que é totalmente possível para uma Amazon é inviável para pequenas livrarias e editoras. O depoimento de Marcia Leite, no Manifesto da Rede LEQT que citei acima, editora da Pulo do Gato, diz tudo:

“A figura quixotesca do editor-cavaleiro em luta por um ideal tem sido a realidade das pequenas editoras, e isso com a atual isenção de impostos. A crise que já abalou frontalmente o mercado das editoras, redes de livrarias, pequenas livrarias e distribuidoras recebe agora o derradeiro ‘golpe do moinho’. Quem cai primeiro é o cavalo ou cavaleiro mais frágil, com efeito cascata sobre toda a cadeia… Onerar o livro não salva a economia, abate a cidadania”.

Nos desdobramentos da crise citada por Marcia, um caso gritante é a atual situação de penúria pela qual passa a Fundação Nacional do Livro Infantil (FNLIJ), seção brasileira do IBBY (International Board on Books for Young People): com mais de meio século de atuação, é a organização mais longeva do Brasil a atuar na defesa do que o professor Antonio Candido tão bem definiu: o direito inalienável à literatura. Mantida por editores, cujas contribuições foram reduzidas em função das sucessivas crises econômicas, corre o sério risco de desaparecer caso a taxação siga seu curso e reduza ainda mais a condição de editores manterem suas contribuições, silenciando um patrimônio cultural de altíssima relevância para a cultura no Brasil.

É preciso aprofundar bem o debate para pensar caminhos e possibilidades efetivas, responsáveis e sustentáveis. Eu quero um MANIFESTO EM FAVOR DE LEITORAS E LEITORES. Tenho absoluta convicção de que, estivesse por aqui, a primeira pessoa a subscrever seria o querido poeta e amigo Bartolomeu Campos de Queirós, autor do Manifesto por um Brasil Literário,  a quem dedicou sua vida e obra.

“Ao virar uma página do livro, eu dobrava uma esquina, escalava uma montanha, transpunha uma maré.

Ao passar uma folha, eu frequentava o fundo dos oceanos, transpirava em desertos para, em seguida, me fazer hóspede de outros corações.

Pela leitura temperei minha pátria, chorei sua miséria, provei da minha família, bebi da minha cidade, enquanto, pacientemente, degustei dos meus desejos e limites”  – Bartolomeu Campos de Queirós

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