A Constituição Federal de 1988, a chamada “Constituição Cidadã”, estabelece vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios em instituir impostos sobre os livros, os jornais, os periódicos e o papel destinado a sua impressão (artigo 150, inciso VI, alínea d), além de templos de qualquer culto, patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos etc.

Diz a Constituição: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] VI – instituir impostos sobre: d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão.

Ocorre, entretanto, que o governo pretende, a pretexto de aumentar a sua arrecadação econômica, passar, por meio da chamada “reforma tributária”, a onerar os livros, os jornais, os periódicos e o papel destinado à sua impressão, conforme se pode depreender de forma clara na proposta (PL 3887/2020), hoje em tramitação na Câmara dos Deputados.

Pela proposta (artigo 21 do PL 3887/2020), ficam isentos da Contribuição sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), o imposto que pretende substituir o PIS e o COFINS, I – os templos de qualquer culto; II – os partidos políticos, incluídas as suas fundações; III – os sindicatos, federações e confederações; e IV – os condomínios edilícios residenciais. Observe que o livro fica de fora desse rol.

Para que se possa entender esse debate, é importe discutir qual foi a finalidade do legislador originário quando da elaboração da proposta que resultou nesta regulamentação, algo já previsto na Constituição Federal de 1946 e que se aprimoraria nas Constituições seguintes, mesmo na de 1969, auge do regime civil-militar, com toda a sua sana repressora.

A Constituição Federal de 1946, a partir de uma Emenda Constitucional apresentada pelo então deputado federal Jorge Amado, um já consagrado escritor, estabeleceu ser vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “lançar impostos sobre” papel destinado exclusivamente à impressão de jornais, periódicos e livros.

A ideia era impedir que o preço destas mercadorias, que poderia ser agravado por eventuais aumentos, pudesse ser um entrave para a circulação das informações, que se dava em grande medida por veículos impressos, e o acesso ao conhecimento, que chegava às escolas e universidades por meio dos livros.

Outra preocupação do legislador originário quando desonerou o livro, os periódicos e o papel destinados à sua impressão era garantir, de alguma forma, que governos autoritários não pudessem se utilizar do aumento dos impostos sobre estes, e consequente encarecimento, para que as pessoas não pudessem se informar e se instruir.

Para alguns, este até pode parecer um cenário improvável. Mas não podemos esquecer que há alguns anos o governo da então presidente da Argentina, Cristina Kirchner, se envolveu num imbróglio com os grandes veículos de comunicação daquele país, que eram opositores ao seu governo, tendo como centro da disputa o papel de impressão destes jornais.

É bem verdade que hoje em dia uma parte considerável das informações circula na internet, o que, teoricamente, colocaria essa discussão por terra. No entanto, quando estamos falando de desoneração de livros e periódicos impressos, também estamos falando dos seus similares virtuais. Isso porque estes foram equiparados em decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) no que se refere à isenção de impostos.

Assim, quando lemos na Constituição Federal de 1988 que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não podem instituir impostos sobre os livros, os jornais, e os periódicos, estamos lendo que estes impostos também são proibidos aos livros e aos periódicos eletrônicos, bem como seus equipamentos de leitura, exatamente para garantir a finalidade do legislador originário, que era a de permitir a circulação de ideias sem perigo da ingerência de governos.

Livros de ricos e livros de pobres?

É interessante observar essa questão, porque em audiência nesta quarta-feira, 5, na Câmara dos Deputados, o pai da proposta de reforma tributária, o ministro da Economia Paulo Guedes, ao defender o retorno da oneração dos livros, disse que isso poderia ser compensado com a distribuição de livros aos que não poderiam por estes pagar, sem apresentar proposta específica para isso.

“Vamos dar o livro de graça para o mais frágil, para o mais pobre. Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar meu imposto. Então, uma coisa é você focalizar a ajuda. A outra coisa é você, a título de ajudar os mais pobres, na verdade, isentar gente que pode pagar”, disse o ministro ao responder o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ).

Ao escutar essa fala, pensei a seguinte situação: o governo passa a taxar os livros com uma alíquota altíssima, que é de 12%, não só promovendo a quebradeira geral de um mercado editorial já combalido, mas tirando definitivamente a possibilidade de que os mais pobres possam comprar este tipo de material; em seguida o governo passa a distribuir livros, sabe-se lá com base em quais parâmetros de escolha do acervo, afetando a espontaneidade na escolha dos títulos, dando ao governo o poder de escolha do que será lido, ou pior, do que os pobres lerão.

Daí um belo dia o governo simplesmente diz que não tem condições de manter essa política, fazendo com que essa população mais pobre não tenha acesso aos livros e aos periódicos nem de uma forma, nem de outra (A propósito, todas as vezes que Paulo Guedes fala dos mais pobres, não posso deixar de notar que ele fala com indiferença, quase como se estivesse se referindo à alienígenas).

Ou seja, a finalidade do legislador originário que, repito, era garantir que o acesso ao conhecimento por meio de material impresso (e posteriormente do material online), fica completamente comprometida. Comprometido mais ainda se pensarmos que estamos falando de um governo que é inimigo das ideias e do conhecimento, conforme se tem demonstrado largamente.

Ao que parece, a divisão de classes, tão marcada na sociedade ocidental, se estenderia aos livros, pois, ao julgar pela “proposta” do ministro Guedes, teríamos os livros de pobre, certamente com baixa qualidade, e os livros de ricos, bem acabados, ilustrados etc. Projete mentalmente essa possibilidade e você poderá imaginar o quão aterradora ela é.

Ainda sobre a audiência na Câmara dos Deputados, da qual Paulo Guedes participou ontem, o ministro não só demonstra o seu total desconhecimento sobre os pormenores da economia política do livro, como deixa claro que esse governo está disposto a tudo para fazer do Brasil um país cada vez mais de analfabetos funcionais e párias da cultura letrada.

A reação?

Esboçando uma pretensa reação à proposta do governo, oito entidades ligadas ao mercado editorial divulgaram essa semana um manifesto intitulado “Em defesa do livro”. O documento destaca que, com a Lei nº 10.865, de 30 de abril de 2004, que reduziu a zero a alíquota do PIS e da COFINS nas vendas de livros, houve uma redução imediata do seu preço nos anos seguintes.

Como resultado, entre 2006 e 2011 o valor médio dos livros diminuiu 33%, com um crescimento de 90 milhões de exemplares vendidos. “Os fatos demonstram claramente a correlação entre crescimento econômico, melhoria da escolaridade e aumento da acessibilidade do livro no país”, diz o documento assinado por, entre outras instituições, a Câmara Brasileira do Livro (CBL), Liga Brasileira de Editoras (Libre) e Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL).

Neste documento um trecho me chamou a atenção especialmente: “As instituições ligadas ao livro estão plenamente conscientes da necessidade da reforma e simplificação tributárias no Brasil. Mas não será com a elevação do preço dos livros – inevitável diante da tributação inexistente até hoje – que se resolverá a questão.”

Esse trecho é curioso, pois parece passar a mensagem de que se “a farinha é pouca, meu pirão vem primeiro”. Ou seja, tudo bem que essa reforma tributária nefasta à maioria dos empreendimentos passe, desde que nós não sejamos atingidos, como se algum segmento pudesse viver alheio ao problema dos demais. Um raciocínio como esse até pode ser válido, se estas instituições admitirem que pretendem continuar fazendo um mercado livreiro para as elites, conforme ocorre hoje.

Tenho cá comigo que estas instituições deveriam (e devem) fazer coro por uma política pública de democratização de acesso aos livros, garantindo que estes cheguem não só às mãos de um grupo de pessoas que pode se dar ao luxo, inclusive, de comprar livros para enfeitar suas estantes. É imprescindível que os livros sejam de fácil acesso à maioria dos brasileiros, independentemente se isso representa o sacrifício das classes privilegiadas.

Tenho acordo com as instituições que assinam o manifesto ao dizerem que o livro “é um ativo estratégico para a economia criativa, que facilita a mobilidade social assim como o crescimento pessoal e traz a médio prazo benefícios sociais, culturais e econômicos para a sociedade” e que “qualquer aumento no custo, por menor que seja, afeta o consumo e, em consequência, os investimentos em novos títulos”.

Só não acredito que algo de bom possa vir dessa reforma ou de qualquer outra medida desse governo, que já provou há muito ser inimigo da educação e do conhecimento. Tenho plena convicção de que se um dia avançarmos nessa pauta, não será por meio das ações de Bolsonaro e companhia. E para fazer a crítica real, é preciso mais do que um manifesto de gabinete.

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