Em 1964, iniciou-se um dos piores capítulos da história brasileira. Com um golpe civil-militar, tinha início a ditadura que durou mais de 20 anos e que, mal concluída por uma anistia injusta, ainda tem reverberações em nossa sociedade. Nas artes da época, o momento era vivido com efervescência e medo. Apesar do grande golpe sofrido com a perda do sonho (afinal, com o governo Jango, havia uma esperança que a revolução acontecesse em pouco tempo), a arte brasileira do período (majoritariamente de esquerda) criou muito, principalmente com a angústia e com o sofrimento. Veja-se, por exemplo, O desafio (1965), de Paulo Cesar Saraceni, que ficcionaliza os momentos logo após o golpe e tem como personagem principal Marcelo, um jovem jornalista de esquerda que cai em imobilidade, em inação após a destruição da precária democracia brasileira construída até então.

Nesse período próximo ao golpe, nada de grandioso foi feito, pelo menos em termos de literatura, que ficou de escanteio em relação ao cinema, ao teatro e à música em questionadora efervescência na época com nomes como Glauber Rocha, Caetano Veloso, José Celso Martinez…[1] Todavia, nesse momento em que a arte da palavra está em segundo plano, há a estreia de um escritor: José Agrippino de Paula, com Lugar Público, publicado em 1965. O romance, mesmo lançado por uma das mais importantes editoras da época, a Civilização Brasileira, e com prefácio de Carlos Heitor Cony, teve poucos leitores, tendo-se em vista que sua segunda edição somente aconteceria em 2004. Esses eram os primeiros passos na cena cultural brasileira de um de nossos mais desafiadores artistas.

Anos depois, já em 1968, depois de contribuir também com o teatro da época através do Grupo SONDA, Agrippino surgia com outra obra que propunha inovações no horizonte de leitura dos brasileiros. Mas agora no cinema. Hitler III° Mundo foi e ainda é um filme que deixa muitos de nós desconcertados, desconfortáveis em frente à tela. Sua linguagem experimental, não-linear e provocativa afasta aqueles mais afeitos a um cinema tradicional. Na obra, um Hitler mal feito, com trejeitos caricatos, domina o Brasil, e alguns revolucionários tentam tirá-lo do poder.

Infelizmente, porém, desde sua finalização, o filme pouco foi exibido. Sua primeira apresentação após a censura aconteceu apenas em 1984, como registra Jairo Ferreira em seu Cinema de Invenção. De lá para cá, a obra também não conquistou muito os espectadores brasileiros, mesmo aqueles mais familiarizados com uma tradição vanguardista em nosso cinema. Não seria agora, no Brasil apocalíptico de 2021, o momento perfeito para retomarmos a discussão sobre o filme?

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O CIDADÃO DE BEM

Um homem e sua esposa estão em um fusca com um pneu furado. O carro vai e volta, mas não sai do mesmo lugar. Em off, uma voz fala sem parar, desesperada, alucinadamente desesperada:

“Furou o pneu. Furou o pneu. […] Você imagina que se eu sair de dentro desse automóvel, de dentro desse Volkswagen alguém irá nos socorrer? […] Você acredita que um indivíduo desse terá coragem de sair do automóvel para vir nos socorrer, para vir me ajuda a tirar o pneu, a tirar o estepe? Não, nós temos que ficar fechados aqui, amaldiçoadamente fechados aqui dentro desse automóvel como se tivesse num deserto precisamente no momento em que a população está passando em massa por essa rua. Nós vamos morrer aqui nesse automóvel fechado, vamos apodrecer, vamos entrar em estado de decomposição e ninguém vai nos apanhar.”

Essa é uma das cenas iniciais de Hitler III° Mundo. Nela, o homem, um indivíduo de classe média (o fusca, afinal, era um dos símbolos desse grupo social) reflete sobre o individualismo da sociedade, tendo-se em vista que ninguém o ajudaria a trocar o pneu de seu carro, mesmo com aquela multidão de automóveis a sua volta. Seus olhos muito grandes e suas olheiras muito marcadas (o que faz lembrar, inclusive, o sonâmbulo de O gabinete do Dr. Caligari) indicam que esse pai de família, suposto cidadão de bem, deve ser observado com atenção.

Na cena seguinte, enfim, o casal vai à borracharia em busca do conserto do pneu do carro, porém (e para nossa surpresa!) eles é que serão consertados, marido e mulher, levados pelo borracheiro como se fossem objetos. Agrippino, nesse momento, nos alerta que essas pessoas, bem posicionadas na sociedade, podem ter malfeitos escondidos. Por isso, precisam de uma recauchutagem. Em um momento posterior, nosso bom homem é elevado ao alto por um guindaste, enquanto pessoas são arrastadas no chão. A câmera dá grandiosidade à figura do homem, olhando-o de baixo a alto.[2]

E, por fim, temos a certeza que ele, como nós pensamos, está envolvido com o Estado brasileiro (que naquele período era comandado por uma ditadura!) em seus piores feitos: a tortura. O trabalho do nosso homem bom é levar corpos de torturados para algum lugar não indicado na obra. Por sinal, a montagem da cena na borracharia, carregada pela dissincronia entre imagem e palavra que aparece na maior parte do filme, já nos alertava sobre seu trabalho podre. Diz-nos uma voz over: “Ficar de olho no progresso dos gritos, senão o elemento morre. Tomar muito cuidado!”, como se recebesse instruções de seus superiores na prática terrorista da tortura. Em outro momento, ao passo que nosso cidadão de classe média arrasta corpos, ouvimos os gritos em espanhol de um torturador e gemidos de um torturado: “Recibe plata de Pequín? (…) ¿La dinamita? ¿Dónde está?”. 

Essa é a imagem do homem de bem que Agrippino nos dá. Apesar de sempre ser muito apegado à moralidade e aos bons costumes, ele está envolvido com as piores ações de um Estado fascista e que, por isso mesmo, tem como base a tortura, a censura e a morte.

Com isso, Agrippino parece nos alertar que aqueles homens de bem, tanto da década de 1960 quanto do Brasil de 2021, sempre muito corretos, ostentando bons costumes, podem fazer muitas ações que contrariam essa imagem de civilidade: observe suas olheiras, olhe com atenção para seu jeito alucinado de falar…

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O HITLER

Hitler, figura central no filme, é representado de forma grotesca, bem à moda do cinema marginal da época. Seus cabelos desgrenhados, suas pernas desproporcionais em relação ao resto do corpo e seu figurino mal estilizado dão ao personagem um caráter baixo, feio, à maneira de líderes fascistas deste e de outros mundos. Em uma de suas cenas mais interessantes, está ele e seu fiel escudeiro, um homem que encarna o próprio império dos Estados Unidos (veja-se, por exemplo, sua toalha com a bandeira norte-americana), dentro de um banheiro. Enquanto o líder escova os dentes, o homem toma banho. Em certo momento, uma grã-fina aparece em busca de Hitler. Seu objetivo é libertar seu amante, que está sendo torturado. Hitler, depois de a mulher sair, pergunta ao homem: “Será que ela é comunista?”. Apenas por ouvir essa palavra, o companheiro começa a vomitar em cima do ditador.

Essa construção cinematográfica nos faz lembrar que a narrativa de Agrippino nunca se baseia em uma lógica cartesiana. Muitas vezes, ela parte para o nonsense, para o ininteligível. Na mesma sequência referida acima, um samurai nu (interpretado por Jô Soares) é quem está no banheiro junto de Hitler e, com sua catana, mata o ditador. Como ele conseguiu chegar até ali? Onde estava o americano companheiro de Hitler no momento? Essas são perguntas para as quais o diretor sequer nos dá pistas, pois sua narrativa brinca com nossa tentativa frenética de ligar os pontos, descobrir a racionalidade no que, muitas vezes, é sem lógica. De fato, talvez a estratégia narrativa do nonsense seja a mais plausível para explicar as realidades tanto do Brasil de 1968 quanto do Brasil de 2021. O que pensar de pessoas que defendem a tortura ou que imitam com risos um ser humano morrendo sem ar com Covid-19?

A própria montagem do filme, em seus variados momentos, fortalece a representação baixa do ditador. Em um desses momentos, a banda sonora reproduz uma música clássica em conjunto com uma reflexão séria do ditador, o que convencionalmente apontaria para uma representação elevada, superior. Todavia, na imagem, vemos Hitler almoçando à mesa com uma camisa colorida, o que nada tem de elevado, mas sim de humano, popular.

O nosso Hitler à brasileira, além de ser submetido ao imperialismo norte-americano, é um Hitler desumano, insensível – algo que é comum aos líderes brasileiros de 1964 e de 2021. Em certo plano, o ditador conversa com seus aliados enquanto pessoas mortas estão penduras próximas a ele, como se nada estivesse acontecendo. Em outro momento, assiste a uma sessão de tortura em que há a castração de um homem. Há um intenso gosto pela morte, o que nos mostra que o cinema de Agrippino pode nos mostrar muito sobre as realidades fascistas do Brasil de ontem e de hoje.

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O QUE PODEMOS APRENDER COM 1968?

Não é de hoje que percebemos mais e mais uma aproximação entre o Brasil de 2021 e o Brasil de 1968. Infelizmente, os personagens de Hitler III° Mundo, nesse sentido, muito podem nos dizer sobre os personagens do Brasil atual. Vivemos, como naqueles tempos, um período de crise ou, melhor dizendo, vivemos sob a imposição da crise como um projeto.

Projeto de crise econômica, sanitária, artística… Estar vivo é um ato que deve ser celebrado a cada dia, pois a crise atravessa nossa sociedade atual, assim como preenchia a de ontem. Para nós, é importante observarmos com atenção o Brasil de 1968, em que artistas sofreram com a censura, com a tortura e com a violência sistemáticas perpetradas pelo Estado brasileiro. Nesse contexto, José Agrippino de Paula talvez seja uma figura com a qual podemos aprender sobre nosso país e suas relações com o fascismo.

Em princípio, Agrippino nos mostra que podemos fazer arte com o precário, com o pouco, com o lixo. Seu filme foi feito assim: restos de outros filmes que Jorge Bodanzky, diretor de fotografia, guardava e depois juntava para as futuras filmagens de Hitler. Essa é, na realidade, a premissa de uma estética do terceiro mundo proposta por Glauber Rocha em seus textos e, depois, explorada de forma mais intensa pelo cinema marginal brasileiro. Assim, nós, que vivemos em constante crise, temos o lixo como modo de produção.

Da mesma forma, surge a importância do acaso, do desconhecido. Nesse contexto de falta de recursos, Agrippino deixa explícita a beleza do acaso e a importância estética que isso tem em suas obras, especialmente em seu filme. Um dos exemplos é relacionado ao som de Hitler. Sem dinheiro, o artista não pagou a empresa responsável pela sonorização do filme. Com isso, houve um boicote, o que fez com que seu som fosse montado de forma desordenada, estranha em muitas partes da obra. O artista, porém, entendeu que isso acrescentava à significação do texto e, assim, preferiu deixá-lo como estava. Em outro exemplo, esse acaso influi no próprio ambiente do filme. Em uma das sequências finais de Hitler, o Homem de Pedra está no alto de um prédio no centro de São Paulo. Para chamar a atenção da multidão que por ali passava e criar um verdadeiro acontecimento, a equipe de filmagem começou a apontar para o alto e dizer que o homem iria se jogar do edifício. Com a movimentação, a polícia surge. E, especialmente naquele momento em que o AI 5 acabava de ser decretado, a presença da polícia significava prisão. Entretanto, após um convite, para surpresa da equipe, os policiais concordaram em participar do filme. Dessa forma, aqueles policiais que lutam e, depois, capturam o Homem de Pedra são, de fatos, policiais.

Com isso, Agrippino deixa claro que é importante que a arte não fique fechada em estúdios, museus, etc… É importante que a arte agrida a vida, que modifique a sua estrutura ordinária. Por isso, a importância dos happenings, dos acontecimentos em sua obra, porque talvez apenas a arte e suas estratégias estéticas para nos fazer ver com olhos livres, como dizia Oswald de Andrade, com o olhar do outro, com o olhar empático. Em síntese, ver com um olhar não fascista.


[1] HOLLANDA, Heloisa Buarque. Impressões de Viagem: CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. 

[2] MORAES, Felipe Augusto de. A arte-soma de José Agrippino de Paula. 2011. Dissertação (Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais) – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

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