Por Leonardo Cazes de O Globo

No dia 25 de agosto, o francês Roger Chartier, professor do Collège de France e pesquisador da história do livro e da leitura, vai abrir o 6º Congresso do Livro Digital, organizado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), em São Paulo, ao lado do americano Robert Darnton. Em entrevista ao GLOBO, por telefone, o historiador afirma que primeiro é preciso definir o que se entende por livro digital para depois compreender os seus impactos. Chartier explica que há dois tipos de publicação: aquela que é a pura reprodução da forma impressa e a que não poderia existir em outro formato, ao unir texto, imagem, áudio e vídeo. Feita a definição, o professor aponta os desafios impostos pela revolução tecnológica às categorias da economia do livro, surgidas no século XVIII, e concorda que nunca se escreveu e leu tanto como agora. Contudo, ele diz não acreditar que os livros digitais, independentemente de que tipo forem, sejam capazes de tomar o lugar dos impressos.

— Quando discutimos o livro digital, em geral discutimos a forma digital de algo que já existe. Esse me parece o tipo mais relevante para o mercado editorial — diz Chartier. — Do segundo tipo ainda não temos muitos exemplos concretos. Seja no campo da ficção ou das ciências humanas, é algo muito marginal. De qualquer forma, não vejo nenhum dos dois em posição de tirar a hegemonia do livro impresso.

O senhor já disse que o futuro dos livros passa pela oposição entre comunicação eletrônica e publicação eletrônica. Por quê?

É preciso matizar essa oposição. A comunicação eletrônica é todo texto enviado pela via eletrônica, seja uma opinião, uma poesia ou um romance. Quando essa tecnologia foi desenvolvida, dizia-se que cada um poderia ser seu próprio editor. A morte do editor era prometida pela possibilidade de fazer circular e tornar público qualquer texto na forma digital. O conceito de edição, tal como definiu Robert Darnton, incluía a formação de um catálogo, a política editorial, a preparação dos manuscritos, que permitiam a construção de uma obra melhor, uma publicação.

Os e-books ainda respondem por uma parcela pequena do mercado. Isso tende a mudar?

É preciso relativizar a baixa participação dos e-books no total de vendas de livros. Se ela se mantém em uma porcentagem marginal num país como a França, de 3%, é porque há novas formas de edições digitais, comercializadas por subscrição ou que não possuem um número de ISBN (International Standard Book Number), e assim não estão visíveis nas estatísticas. Então, hoje o que há é uma forma intermediária entre a comunicação, que é a forma de fazer circularem textos em meio digital, e a publicação tradicional, que consiste numa série de intervenções sobre o texto.

Os entusiastas da revolução tecnológica defendem que nunca escrevemos e lemos tanto como agora, na era da internet e das redes sociais. O senhor, como historiador, concorda?

Sim, mas o ponto fundamental ao discutirmos o livro eletrônico é entender que ele é algo muito marginal no mundo digital. O mundo digital não é um mundo de livros, não é nem sequer um mundo de jornais ou revistas. É um mundo da digitalização das relações entre os indivíduos e da digitalização da relação dos indivíduos com as instituições. Quando você me diz que nunca se escreveu tanto como agora, é porque muitas formas de comunicação, como a telefônica, se transformaram em práticas digitais escritas. Já a digitalização das relações humanas muda noções muito antigas como a amizade, a intimidade e a individualidade. E nós também vivemos num mundo econômico, com as suas técnicas burocráticas, os formulários, a multiplicação das formas de relacionamento com as instituições. Por isso é muito importante discutir a cultura escrita, seja científica ou ficcional, no campo digital, mas nunca podemos nos esquecer de que ela é muito marginal. A gente, que lê, escreve e publica livros, tem a tentação de esquecer isso.

O texto digital traz uma flexibilidade. Quais as consequências disso para a organização do conhecimento?

Essa flexibilidade é uma maravilha e um perigo. É uma maravilha porque permite uma comunicação em que o texto é aberto às intervenções do leitor, em um processo contínuo de criação textual que cria não autores tradicionais, mas comunidades digitais de autores e editores. O perigo, por outro lado, é que esse tipo de texto aberto, maleável, vai contra as categorias definidas desde o século XVIII na economia dos textos: o autor, o reconhecimento da originalidade da obra, que é a condição do copyright, a propriedade literária. Esses três impérios — do autor, da originalidade e da propriedade — são transformados ou apagados no mundo digital flexível que descrevemos. Aí uma questão se coloca: é possível introduzir no mundo digital esses conceitos? Vemos toda a resistência das comunidades digitais à propriedade intelectual.

Grandes empresas dominam o mundo digital, como o Google e a Amazon. O senhor vê algum risco aí?

Hoje há o problema da compra digital de um livro em papel. Apesar da participação pequena de livros eletrônicos nas vendas, as “instituições” da cultura impressa estão em dificuldades. As livrarias, por exemplo, enfrentam a concorrência da Amazon. É uma contradição. Já em relação ao Google, há dez anos havia um embate entre os autores e a empresa, que tinha um projeto de construir uma biblioteca digital universal e não se preocupava muito com direitos autorais. O Google mais ou menos abandonou esse projeto, mas suas iniciativas recentes vão no sentido da digitalização dos textos, das práticas e das relações. Isso ilustra a relação entre a digitalização da cultura escrita e o mundo social.

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