Sim, é um baita desafio formar boas(bons) leitoras(es). Ainda mais nestes tempos de pressa e pressão, de games, internet e afins a mãos cheia, pra todos os gostos e todos os bolsos. Atenção dividida constantemente com qualquer distração acessada num simples touch. Basta o toque de um único dedo e um universo de entretenimento gratuito está à disposição de qualquer internauta. E não é só: muitos, se não todos, têm suas aventuras narradas em …..livros!  Impressos ou digitais. Então, ao que parece, ao contrário do que se preconiza, o livro segue sendo, sim, uma tecnologia de futuro!

Importante destacar que esta não é uma ode à tecnologia digital. Excetuando as armas, nada é bom ou ruim em si, pois o que importa é o que fazemos com ela. Há uma infinidade de razões para celebrar a presença desta tecnologia, que nos conecta com um oceano de dados, com gente de todos os cantos do mundo. Mas tal qual uma carta náutica imprecisa ou errada nos impossibilita de chegar aos lugares buscados, navegar na internet sem preparo ou usá-la excessivamente para propósitos superficiais pode afetar negativamente o resultado das nossas interações. Prejudicando, inclusive, nossa capacidade ontológica de nos tornarmos plenamente letradas(os). Veja aqui e aqui.

Há, contudo, educadoras incríveis que aprenderam como aliar o conhecimento e fascínio de jovens com o universo digital com uma proposta significativa de jornada leitora. Veja aqui. É um relato de Gisele Sodré Paes, professora em escola pública de Ilhabela (SP), sobre como a tecnologia pode estar à serviço das leituras, das(os) leitoras(es) e das escutas.

Nos dias em que vivemos hoje, a alfabetização publicitária muitas vezes precede ou é vizinha do alfa letramento, como denomina Magda Sores[1], da entrada no mundo da cultura escrita. Guiadas(os) por palavras e textos funcionários, ficam órfãs(ãos) de experiências profundas e significativas. Para ampliar o pequeno panorama em que vivemos e nos projetar, seja para a intensidade dos ambientes e das relações que estão no chão que a gente pisa, seja para alargar horizontes para muito além de nós e promover abertura para abraçar a diversidade e causas de valores humanitários, é preciso, como diz o Professor Luiz Percival Leme Britto, “ler para além do óbvio”.

Então, vejamos: um livro de um youtuber sobre uma aventura de videogame é apenas e tão somente uma outra forma – escrita – de enveredar pelo mesmo universo: o jogo, que pode ter seu mérito até como recurso educativo, para aprender a planejar, por exemplo. Mas é isto o que é, um jogo inserido em contexto já sabido; nenhuma trama ou tensão ou personagens a desvendar, a criar, a imaginar, a reconhecer, a animar. Nada que arrepie a pele, provoque um choque, assombre, encante, seja desconhecido. Nenhum personagem com quem se solidarizar, estranhar, amar, odiar, temer para além do cenário já sabido. Nada que faça mover de forma diferente um único músculo de um neurônio, se ele tivesse um. É estrada já percorrida, já sabida. Mais do mesmo! Ah! E não se trata aqui de censurar, negar, impedir, bloquear, impossibilitar o acesso a estes livros – nem queimar em praça pública, obviamente -, mas saber e estar atenta(o) para empreender estratégias que promovam às crianças, jovens e adultos uma trajetória leitora com leituras formativas, que instiguem a pensar, a indagar: “leituras para além do óbvio”.

São livros que são pedidos e vendidos como água. Mas não são boa literatura. Da literatura colhemos o espanto e nos alimentamos de revelação. Em “Lugar Nenhum”, de Neil Gaiman, a vilania e insensibilidade de um personagem cruel é retratada por meio de um de seus prazeres mais requintados de sadismo – que compreende uma longuíssima lista de horrores levados à cabo ao longo de séculos: saciar sua fome de beleza do mundo comendo, literalmente, uma estatueta de porcelana chinesa raríssima, criada por um artesão renomado e incomparável há séculos atrás. Não basta a este personagem, o S.r. Croup, realizar as maldades sabidas ou surpreendentes aos seres humanos que, caídos em desgraça segundo algum bom pagador por vinganças, definham em suas mãos; ele se alimenta do que pode a arte para potencializar beleza e humanidade no mundo!

É longa e diversificada a prateleira do “mais do mesmo”. Adaptações ruins de clássicos da literatura, dos contos hindus e da mitologia grega aos contemporâneos, tem de tudo um muito. É preciso um bom trabalho de arqueologia para identificar e propor leituras de referência. Porque há, igualmente, um universo fantástico de obras que nos põem a indagar a vida e enxergar muito mais além do que trafega na superfície das redes, incluindo aí as fake news.

 “Formar leitores é muito mais do que transmitir uma técnica: é algo que tem a ver com o princípio de prazer, com as liberdades da imaginação, com a magia de ver convertidos em relatos bem narrados e em reflexões nítidas muitas coisas que vagamente adivinhávamos ou intuíamos, com a alegria de sentir que ingressam em nossa vida personagens incomparáveis, histórias memoráveis e mundos surpreendentes[2], escreve Willian Ospina, jornalista e escritor colombiano.

Assim como não é possível guiar alguém por trilhas desconhecidas por quem guia, levar a ler e apoiar a formação de boas(ons) leitoras(es) é obra que só pode ser bem empreendida por leitoras(es) experientes: não é possível dar aquilo que não se tem. Adultos, mães, pais, famílias, educadoras(es), olho vivo, estudem, pesquisem. Por isso sou defensora intransigente acerca da urgência em incluir formação leitora robusta obrigatória na graduação e especialização de docentes e da universalização de boas e vibrantes bibliotecas nas escolas, abertas à comunidade, atuando em rede com bibliotecas comunitárias e públicas.

[1] “Desenvolvimento explícito e sistemático de habilidades e estratégias de leitura e escrita…conhecer e aprender seus usos sociais: ler, interpretar e produzir textos. Não apenas alfabetizar, mas alfabetizar e letrar”, “Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e escrever”, Magda Soares, pág.12, Editora Contexto, edição 2020.

[2] “Por qué leer y escribir”, selección de Silvia Castrillon, pág. 19, Instituto Distrital de Cultura y Turismo de Bogotá, 2006

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