É isso mesmo, estamos às portas da quarta revolução industrial. Assim como as anteriores, os avanços tecnológicos que extinguiram profissões e substituíram inúmeros trabalhadores, agora ameaçam milhões de postos de trabalho. E não é uma projeção de futurismo para os próximos dez anos. Segundo um relatório do Fórum Econômico Mundial (WEF), divulgado em janeiro deste ano, a revolução tecnológica resultará na perda de aproximadamente sete milhões de empregos nos próximos cinco anos. Isso pode significar uma crise no mundo empresarial, no mercado de trabalho das maiores economias mundiais e também dos países em desenvolvimento.
Grosso modo, a primeira revolução industrial foi desencadeada pela popularização da máquina a vapor, a segunda pelo uso da eletricidade e das linhas de montagem e a terceira pelo surgimento da eletrônica e a robótica. Segundo especialistas, a quarta revolução industrial irá formatar a economia por meio da junção de vários fenômenos atuais, como a própria internet das coisas e a ciência dos dados ou como é mais conhecida, a Big Data.
Na verdade já vivemos essa realidade de tecnologias digitais e superconectividade entre as pessoas, onde a informação é o bem mais valioso. E apesar de muitos de nós bibliotecários ouvirmos falar desses termos há algum tempo, será que temos as competências necessárias para atravessar essa nova revolução? A previsão do Fórum Econômico Mundial reacende o debate sobre o futuro do bibliotecário e a possível extinção da profissão nas próximas décadas.
Fim da biblioteconomia?
Não é de hoje que o debate em torno do nosso futuro profissional rende polêmicas. Não é leviano dizer que o advento da computação e da internet, a luz das práticas atuais, de certa forma colocou em cheque nossa profissão. Recordo-me quando o e-book preconizou o fim dos livros e causou grande alvoroço no mercado editorial e livreiro. Vivemos o desenvolvimento dos buscadores web, cujo avanço atual pode reconhecer perguntas feitas com linguagem natural e até mesmo de voz.
A vinda da computação nas nuvens, com terabyts de espaço para armazenamento e acesso remoto a informação, tem eliminado a necessidade de suportes físicos de armazenamento de dados. Os computadores quânticos são a promessa do aumento sem precedente na capacidade de resolução de problemas. O Google anunciou recentemente ter um computador quântico já operacional. Segundo especialistas, o computador resolve em segundos, cálculos complexos, que normalmente levariam até cinco anos com os processadores existentes.
Também não nos esqueçamos dos assistentes virtuais, que prometem ser o próximo nível na realização de tarefas. À exemplo disso, recentemente a IBM lançou o Watson, um “sistema cognitivo”, que segundo seus criadores, é capaz de entender a linhagem natural de tweets, textos, artigos, relatórios e estudos. Segundo a IBM, além de aprender a cada experiência de busca, o sistema também é capaz de ensinar as pessoas.
Além do relatório do Fórum Econômico Mundial, existem outros estudos que evidenciam mudanças dramáticas no futuro das profissões. Um estudo famoso realizado pelos professores Carl Benedikt Frey, do Departamento de Economia, e Michael A. Osborne, do Departamento de Engenharia, ambos pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tentaram responder essa grande incógnita sobre o futuro do trabalho nas próximas décadas. Analisaram 702 profissões e estimaram suas chances de serem automatizadas nos próximos 20 anos.
O estudo considerou atribuições específicas de cada profissão como, por exemplo, a capacidade de responder com soluções criativas, interações sociais, capacidade de negociar, persuasão, coordenação de funcionários, improvisação, adaptação e uma dezena de outros aspectos práticos e de inteligência social. Chegaram a um índice que varia entre 0 (nenhum risco de substituição) e 100% (risco total). Entre as profissões mais ameaçadas, o bibliotecário aparece com 99% de probabilidade de ser substituído pelas máquinas.
Sim colegas, segundo a pesquisa, apenas 1% nos separa da probabilidade de extinção profissional em massa. É certo que outras pesquisas sobre o futuro das profissões já erraram antes, mas talvez não da maneira como imaginamos. No livro A nova divisão do trabalho, publicado em 2004, os economistas Frank Levy, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e Richard Murnane, da Universidade Harvard, afirmavam que os robôs ainda não seriam capazes de realizar algumas tarefas mais complexas como dirigir, por exemplo. A previsão foi superada logo no ano seguinte, quando Stanley, um carro sem motorista da Universidade Stanford, venceu um desafio da Agência de Projetos Avançados de Defesa dos Estados Unidos (Darpa).
O Google atua no projeto desde 2009 e até o momento já rodou mais de 500 mil quilômetros sem nenhum acidente. A tarefa, considerada insubstituível até 2004, têm agora 89% de chance de ser substituída por uma máquina. Outros projetos de robótica e inteligência artificial do Google já ameaçam superar o paradoxo de Moravec – como ficou conhecida a dificuldade de adaptação das máquinas, em referência a Hans Moravec, pesquisador de robótica da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos. Os projetos desenvolvidos pela empresa Boston Dynamics estão criando robôs capazes de correr, saltar, atravessar obstáculos, reconhecer gestos humanos, capazes de aprender com seus próprios erros e traçar estratégias complexas na resolução de problemas. A capacidade de adaptação às rápidas mudanças que estão ocorrendo no âmbito do trabalho não é mais uma opção profissional, é uma condição sine qua non de qualquer trabalhador deste novo milênio.
Nesse frenético e admirável mundo novo do avanço tecnológico, a frase do escritor Neil Gaiman, de que o “Google pode nos trazer 100 mil respostas, mas apenas o bibliotecário trará a resposta correta”, pode nos dar certo alívio. Pergunte a um bibliotecário o que nos diferencia como profissionais e, provavelmente, ele responderá que a diferença reside em nossa capacidade técnica de organização e revocação da informação. Ou algo parecido. Alguns podem insistir que o “tecnicismo” tem nos fragilizado historicamente. Outros podem refutar esse argumento afirmando que nossa atuação tem a ver com o trabalho intelectual. Mas a verdade é que nem precisamos ir muito longe com os exemplos para evidenciar as mudanças no nosso campo de atuação.
Recentemente dois alunos de robótica da Aberystwyth University no Reino Unido, criaram um ‘robô bibliotecário’ com a capacidade de reconhecer solicitações verbais, com autonomia para se movimentar no acervo e encaminhar os estudantes até os livros requisitados. O robô ‘Hugh’ está em fase de testes e, mesmo que ainda não seja um exemplo de IA (inteligência artificial), tem potencial para realizar as tarefas de interação e serviços de informação para usuários.
A quarta revolução industrial
Mesmo que muitos de nós bibliotecários ainda não tenhamos atinado, a quarta revolução industrial está a um passo de criar tecnologia capaz de resolver problemas complexos e fornecer informações precisas em tempo real. Se na revolução industrial clássica as máquinas substituíram o trabalho braçal e repetitivo no chão das fábricas, agora, máquinas e programas sofisticados começam a substituir o trabalho intelectual nos escritórios. E se todos os avanços que mencionei acima, os que estão acontecendo ou que irão acontecer muito em breve, ameaçam diretamente o trabalho repetitivo e intelectual, o que sobra para nós bibliotecários? E mais além, o que nos sobra de expertise é suficiente para garantir nosso futuro como profissão?
Refletindo sobre isso, encontrei o livro The second machine age (A Segunda Era da Máquina), dos professores do MIT, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee. Segundo eles, a automação do trabalho intelectual será um salto comparável ao da Revolução Industrial. Eles afirmam que a segunda revolução das máquinas nos trarão incríveis possibilidades de melhoria na qualidade de vida, mas que juntamente trarão grandes incertezas, como o desemprego e a concentração de renda. Sabe-se que historicamente o avanço tecnológico fechou muitas portas, mas também abriu um número ainda maior de janelas.
Considerando que vivemos uma fase de transição em nossas práticas profissionais como bibliotecários, imagino que nem sempre as oportunidades sejam fáceis de serem identificadas. O estudo de Frey e Osborne mostraram em seus resultados, que profissões como antropólogos, coordenadores de ensino, professores de ensino fundamental, curador de exposições, orientador vocacional, gestor de recursos humanos, entre outras áreas, possuem baixíssima probabilidade de serem substituídas. Todas com menos de 1% de probabilidade.
Sobre essas profissões, existe uma dimensão que, embora muitos de nós atuem com ela diariamente, ainda não a percebemos como classe profissional. Desde o início da minha atuação em bibliotecas escolares e públicas, me parecia evidente que, pelo menos nestas áreas, nosso real métier era o ensino e aprendizagem. Talvez não propriamente como os professores em sala de aula, mas definitivamente o cerne de nossa atuação era a aprendizagem. Gosto de citar o professor David Lankes, da Universidade de Syracuse nos Estados Unidos, cujo livro “Expect More: Demanding Better Libraries for Today’s Complex World” (2012) afirma que bibliotecas e bibliotecários na verdade atuam no ramo da aprendizagem.
Segundo Lankes, facilitamos o acesso a fontes, recursos e ferramentas de informação, promovemos ambientes de aprendizagem, estimulamos atividades de aprendizagem, promovemos treinamentos, formação de habilidades, aperfeiçoamento e motivamos nossos usuários a serem curiosos e buscarem outros ambientes de aprendizagem. Me parece óbvio linkar nossa atuação às profissões com qualidades e aspectos educacionais e pedagógicos de difícil reprodução pelas máquinas e programas.
O LinkedIn, rede de contatos profissionais com cerca de 260 milhões de usuários, pesquisou as dez profissões que mais cresceram desde 2008. Segundo o estudo, oito dessas profissões envolvem programação de sistemas e formas criativas de aproveitar a “enchorrada” de informações disponíveis na web. A crescente informatização continuará a eliminar profissões, principalmente aquelas que não exigem habilidades criativas, sociais e com percepções mais sofisticadas.
Segundo a pesquisa de Frey e Osborne, a “inteligência social pode ser compreendida como diplomacia, habilidade política, sensibilidade e a capacidade de formar laços de confiança e empatia”. Justamente as competências que educadores consideram essenciais à atuação de profissionais ligados a área de ensino e aprendizagem. As máquinas ainda são menos capazes de superar a percepção, a inteligência social e a criatividade. Quanto mais nossa profissão se aproximar dessas competências, menos propensa ela estará à automação e substituição.
Na verdade, o alto risco de substituição dos bibliotecários não significa que perderemos necessariamente nossos empregos. Significa que nosso horizonte profissional será limitado, com baixos salários e uma pressão constante causada pela possibilidade de substituição pelas máquinas. Se por acaso a realidade em alguns lugares já é algo parecido com a previsão, podemos presumir que não há tempo para dúvidas. É urgente realizar uma guinada de 180º graus na nossa formação profissional. É necessário resignificar nossos conceitos e práticas. É fundamental revitalizar nossas competências e habilidades. Nosso objetivo não é somente sobreviver à próxima revolução industrial, mas reconstruir nosso sentido e relevância à sociedade. Profissionais bibliotecários capazes e necessários ao desenvolvimento humano.
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