Foto: Serafim
Essa é a terceira vez que seguro o copo de papel, levantando-o sem firmeza e abandonando o café com baunilha e doce de leite em cima da mesa. Ouço o arrastar de cadeiras e posso sentir os abraços eufóricos. Amigos de longa data se encontram na mesa ao lado. Há saudade ali; há alegria e até mesmo o breve som de sorrisos que se misturam com lágrimas. O sabor do reencontro torna a vida mais vida, pelo menos a de quem está acostumado a estar metido em desencontros. Eu estou só. Completamente só. E me dou conta disso quando levanto da mesa vazia de presenças e esqueço o copo de café em algum ponto daquela madeira igualmente solitária.
Saio do cultuado Odeon e caminho sem qualquer direção pela Cinelândia. As horas estão morrendo no frio da tarde. Caminho. Sinto como se estivesse vendo sem ver as pessoas que correm ao redor. Elas estão mesmo correndo ou apenas caminhando rápido, com pressa e sem sentido? Acho que nunca poderei saber. Atravesso ruas movimentadas sem ter certeza se serei atropelado e morrerei em qualquer hospital público. Consigo visualizar meu corpo moribundo definhando no chão, sem leito ou palavra amiga. Estou só.
Ando pelas ruas e penso no rosto dela. Ainda não faz um dia de sua partida e do nosso último olhar. Decidida, a única mulher que amei voltou para a Malásia, país que a viu nascer e crescer, e me largou aqui, pobre miserável, como um resto de comida desperdiçada. Lembro, como um fogo fátuo, dos olhos extremamente puxados que criam pequenas bolsas de carne ao menor sinal de sorriso. “Herança do meu pai, ele é chinês”, ela me respondia, um pouco tímida, sem que eu sequer fizesse qualquer pergunta a respeito. Lembro do sorriso de dentes grandes, brancos e simetricamente enfileirados, uma combinação entre iguais quando comparado às sobrancelhas grossas. E, puxa… Mesmo quando ela franzia o cenho, como se quisesse entender melhor uma palavra ou pergunta, abrindo um pequeno rastro entre seus olhos, ela o fazia sorrindo.
Quando a deixei no aeroporto e acenei, voltei para casa sem saber exatamente como e onde morava. Talvez por uma percepção instintiva, eu cheguei ao endereço certo. Ao fechar a porta, minha primeira ação foi estender um imenso lençol, o preferido dela, em todo o comprimento da cama. Disse aos meus dois cachorros que subissem e rasgassem aquele maldito pedaço de pano. “Desgraçada”, pensei em voz alta. Nenhum dos cães ousou encostar no lençol. Vencido, sai de casa e acabei parando no café da Praça Floriano.
A boca bem desenhada dessa infeliz me acompanha enquanto estanco na Rua Primeiro de Março. Coloco os pés no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Minha visão está turva e cansada; retiro os óculos, limpo na camiseta, o que só piora o embaçado. Não me importo. Entro no centro cultural. Há uma exposição de anomalias, mas é justamente essa sensação de estranhamento que as peças questionam e provocam. Consigo absorver isso enquanto passeio pelas esculturas disformes: flores que parecem vaginas, pedaços de carnes ambulantes que despencam do teto; há também animais de garras enormes, meio macacos meio bestas, brincando e interagindo com crianças. Em uma das salas, onde o escuro estende e mistura a pulsação real com a projetada, mil respirações ecoam do chão e do teto. O movimento é pequeno, então eu sento e choro.
Levanto minutos ou horas mais tarde, apoiado pelo braço do segurança do lugar. Estou zonzo, a visão ainda turva. Levanto e desço as escadas. Por destino ou apenas por localização, sigo em direção à rua Visconde de Itaboraí. Entro em um prédio antigo. Um rapaz magro sinaliza um “boa tarde, senhor” e pergunta o que achei da exposição Com Ciência e se o CCBB está muito movimentado. Não consigo entender do que ele está falando e apenas sussurro um “sim” para as duas. “Que lugar é esse?”, questiono. Ao que ele me responde, mas não sem antes arregalar bem os olhos: “Centro Cultural dos Correios, senhor”. Continuo bravamente: “Ok, certo. Há algo para olhar aqui?”. A resposta é dita de forma quase estudada: “Claro, senhor. Temos três grandes exposições e…”. Antes que ele termine, eu o interrompo: “Por onde vou?”. Ele apenas aponta para a porta ao lado.
No espaço, fotos de caminhões com pinturas Maias. Li no banner algo sobre “desejos esquecidos” e circulo indefinidamente pelas fotografias e imagens. Há também uma citação de Stendhal ao lado de uma das fotos. Ela soa explicativa ao diferenciar turistas de viajantes. Detenho meu olhar em um quadro abstrato que mistura verde, azul e outras cores. Verde e azul, as cores preferidas dela. Os cabelos escuros desciam em cascata pelos olhos já fechados quando ela pronunciava “green and blue are my favorite colors”. Verde e azul.
Não sei quanto tempo passei desacordado em pé diante daquele quadro. Sacudi a cabeça e continuei a peregrinação subindo as escadas. No outro andar, animais silvestres estavam ao lado de manifestações religiosas; pinturas de anjos pareciam dialogar com entidades da Umbanda. Madeira, cores, brilho. Por um segundo, esqueci a minha dor e observei uma paisagem. Grandes pinheiros rodeiam um lago azul, onde dois homens pescam e um pássaro branco sobrevoa suas cabeças. O sol parece um deus onipotente, distribuindo seus raios como se fosse uma explosão. Um sonho do qual fui acordado por vozes infantis. Três ou quatro crianças circulavam eufóricas pela enorme sala. Decidi fugir do local e adentrar em outra sala.
Ela estava escura, repleta de luzes, palavras em movimento e placas. Havia recorte e colagem e alguns objetos modernos ressignificados. Pensei nessa palavra, intelectualmente forjada, e lembrei dela, da minha ex-garota. Lembro dos cabelos molhados compridos deslizando por cima da jaqueta preta enquanto ela diz: “Você é tão inteligente”.
Estou só. Tristemente só.
Bancos estão espalhados em um dos cantos da sala; há fones de ouvidos pendurados ao lado. Eu os coloco e ouço a voz grave e labiríntica de um homem. Segundo a exposição, ele se chama Arnaldo Antunes. Eu não consigo perceber. Não consigo associar. Sinto meu espírito perdido no centro de tantas palavras. Ouço a voz de Arnaldo, sinto a luz, vejo as palavras… Estou desaparecendo. Palavras são borrões e frases incompletas. Vejo o rosto dela e os olhos que precisam ser imensamente abertos para não fecharem por completo. Não existe nada além dos muros invisíveis dessa instalação artística. Um turbilhão de pensamentos… Eu só tenho pensamentos; eles são tudo o que me resta.
Saio do prédio antigo. Provavelmente sou observado pelo rapaz magricela da entrada. Isso não me incomoda; não observo ninguém. Sigo a passos lentos pelas ruas escuras. Um grupo de garotos descalços corre em direção oposta. Outras pessoas correm atrás deles e gritam. Ouço o sino distante de alguma igreja. Minha memória me trai e mostra o brilho dos lábios dela… E o sinalzinho imperceptível na bochecha direita. As pálpebras curtas abrem e fecham. A respiração silenciosa e a boca semiaberta ao acordar. Os pôsteres e desenhos fixados na parede, acima da cama. Rostos e imagens que lembram a exposição do CCBB. Na mesinha de cabeceira, uma luminária briga por espaço com livros, um relógio digital velho e camisetas brancas que escapam da gaveta. Ela abraça o travesseiro amarelo como se apertasse a própria vida. Segundos depois, ela puxa o lençol até a altura da cabeça e retira novamente. Estica as mãos e toca nos lábios. Não, eu não estou mais só.