Tenho o hábito de ouvir música algumas vezes por dia. Divido os fones de ouvido – que tento usar cada vez menos, por indicações médicas e decisão pessoal – com playlists e podcasts. Estes últimos, eu só ouço pela manhã, antes de trabalhar ou realizando alguma tarefa mecânica. Fixo melhor o conteúdo dessa forma. As playlists ficam comigo o resto do tempo.

Tenho ouvido algumas canções que ficam remexendo na gaveta da memória. Quando eu menos me dou conta, lá estão elas. Aliás, tudo vasculha a gaveta da memória: se sentimos um cheiro, observamos rostos de desconhecidos, ouvimos música, guardamos cenas de filmes, observamos, petrificados, enquanto a guimba de um cigarro que nunca foi nosso queima no chão. Até mesmo fotografias na internet… Uma lista que não cansa!

Eu carrego as pessoas que amo dentro do meu coração o tempo todo. Não sou e.e cummings, mas me atrevo a fazer e poetizar isso. Cada pessoa é uma máquina de fazer memórias. Nós somos “memory makers” constantes. Existiu o tempo em que prestávamos mais atenção nas memórias que construíamos. Havia a materialização: fotografias impressas, cartas de amor e ódio em papéis, bilhetes de abandono, iniciais de nomes gravadas em árvores, revoluções em jornais e coisas do gênero. Nos últimos anos – vinte, dez? –, nossas vidas estão prisioneiras de uma nuvem virtual.

Ainda escrevo cartas (remeto até e-mails epistolares, o que, pasmem, assusta gente!), envio souvenirs pelos Correios, imprimo fotografias, mantenho diários, cadernos de ideias e poemas, envio cartões postais e guardo tudo o que ainda recebo (posso contar nos dedos quantas cartas ou meros bilhetes recebi nos últimos 5 anos). Segundo um amigo, eu sou “alguém do século XIX perdida no século XXI”. Percebam: a fala dele revela como pensa a maioria quando se vê diante de atividades que considera extintas.

Há palavras como “analógica”, “antiquada”, “velharia” e gírias de nível mais baixo. Eu não me importo. Como “fazedora de memória”, eu gosto disso. De verdade. Gosto de ouvir uma música que me remeta a determinado momento da vida, seja ele bom ou ruim; gosto de tocar nas cartas de pessoas que eu amo (algumas não vivem mais neste plano, o que me enche de saudade), gosto de ler e escrever dedicatórias em livros, sentir a energia que brota dos rastros que deixamos…

Segundo os místicos, tudo é energia. Pela minha experiência e crença, eles estão certos. Nós estamos todos conectados. Nossos rastros estão em constante renovação e destruição. Manter o que foi parte disso me deixa mais feliz. Não pelo apego – um dia, minhas preciosidades serão o lixo de alguém e está tudo certo, porque a impermanência da vida nos ensina isso -, e sim pela energia que brota do que ainda está comigo.

Até nossos passos querem apagar e, hipnotizados, autorizamos. Pior: nós mesmos os apagamos. A quem isso favorece? Por que fazemos o que fazemos sem pensar?

Não sei. Tenho só palpites, nada mais.

Ouvindo uma música, lembrei de um livro que encontrei em um sebo. O livro pertenceu a alguém que viveu no século passado (lembrando aqui que o século XXI começou em 2001. Antes disso, consideramos século passado). Nas páginas, há rabiscos, marcações, anotações. Incrivelmente, tudo o que eu teria rabiscado, marcado e anotado.

A pessoa que foi dona deste livro conversa comigo através das pegadas que deixou. Lendo os seus rastros, descobri que temos alguns gostos parecidos e me peguei sorrindo, imaginando que teríamos nos dado bem, quem sabe, se tivéssemos nos encontrado no mesmo tempo. Mas nossa diferença de idade é grande – nesta dimensão, neste universo, entre tantos outros -, e eu estou aqui, a pessoa não mais (questões de multiverso que me apaixonam e me fisgam).

Da música que eu ouvia, do livro do sebo, da vida de outra pessoa, da minha vida, do que temos em comum (e que nos liga), do meu relógio de cabeceira que fica na estante da sala para a fotografia que vi do mesmo relógio (alterando apenas a cor: o meu relógio é cor de rosa e o da pessoa eternizada na fotografia era preto), tirada quando eu tinha, provavelmente, 3 ou 4 anos.

A fotografia não apagada pela nuvem – pois impressa em papel fotográfico -, mas disseminada na nuvem, revela que, quando os ponteiros do meu relógio estão no 5 (menor) e no 3 (maior), descendo em direção ao número quatro, parando na bolinha que representa o dezessete, independente se pela manhã ou pela tarde, o portal da memória se abre, e ali há o nosso encontro.

O momento mágico e especial que vive através do tempo. Vive com o tempo. Vive além do tempo.

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