O poeta espanhol Eduardo Jordá diz exatamente o que acredito sobre ler e levar a ler literatura: “Lemos para imaginar um mundo em que crueldades não possam acontecer. E se acontecem uma vez, para que nunca mais voltem a acontecer. Ou melhor dizendo, para que ao menos acreditemos que nunca mais voltarão a acontecer”.

Logo adiante relato depoimentos de estudantes do ensino médio de escolas públicas em contato com leitura compartilhada de literatura, um conto asiático chamado “O Dragão de Fogo”, que narra a história de um lugarejo onde um dragão que havia sido posto a dormir pelos heróis do passado ressurge, o que demanda que alguém do vilarejo seja convocado para convencê-lo a não destruir o lugarejo.

Ao contrário dos tradicionais contos de heróis, um pequeno desenhista chamado Shun Li é sorteado para enfrentar o dragão. Como alguém destituído de tudo o que reconhecemos como força, poder e potência poderá derrotar um dragão? Metáfora para como alguém que não atende ao padrão e ao comportamento esperado pode ser vencedor? O que é ser vencedor? O que é vencer?

Quais condições estamos de fato ofertando para que crianças e jovens elaborarem a si mesmos, ressignifiquem suas vidas em condições tantas vezes precárias e serem afetados e se encantarem e se fortalecerem para seguir em frente na tessitura de um mundo onde cabem todos e os sonhos de uns poucos não custem os de tantos?

O que nos toca neste conto – que para mim é um contraponto à clássica história da cigarra e da formiga – são as artimanhas colocadas em ação pelo nosso pequeno herói, que prescinde das armas tradicionais ou superpoderes. O que Shun Li tem de valioso são seus desenhos.

Desde seus seis anos retrata lindamente o cotidiano da aldeia graças ao apoio cuidadoso e laborioso dos moradores locais, que lhe ofertam papel de arroz. “Todos apreciavam o seu trabalho e nem se importavam com a ausência de Shun Li nas lidas do plantio e da colheita. Até com muito prazer, separavam o material necessário à fabricação do papel para o pequeno artista.”

O dragão pergunta a Shun Li o que é a coisa mais útil do mundo para ele, e Shun Li responde: o papel. Então o dragão pede que traga o fogo embrulhado em papel, e Shun Li leva até ele lanternas de papel que restaram de uma linda festa de casamento na aldeia; depois o vento seguro pelo papel, e Shun Li leva até ele um leque, peça muito usada por seu povo e, finalmente, envolta em papel, a coisa mais valiosa do mundo.

Shun Li, certo de que vai morrer, leva até o dragão um lindo desenho que fizera na madrugada com os rostos de todas as pessoas da aldeia com quem convivia e havia convivido, todos que de alguma forma haviam participado de sua vida e o amparado para apurar sua arte, para se tornar o experiente, cuidadoso e minucioso desenhista que alegrava e enlevava tanto os habitantes da aldeia.

Shun Li levou até o dragão a metáfora da coisa mais importante do mundo, e o dragão rapidamente teve olhos de ver, era o amor. E voltou a dormir.

As(os) estudantes disseram:

“A gente vive num mundo caótico, horrível, e lendo um livro com o qual a gente se identifica a gente pode fugir da nossa realidade”.

“Tem pessoas que ainda não se encontraram, seu coração ainda não bate mais forte”.

“Quando você lê você pode acreditar que algo de bom pode acontecer”.

“Tem gente que não tem paciência de falar e é só força no braço, mas não dá certo com violência”.

“E se o dragão acordar de novo? Temos um Shun Li?”

“A literatura é, não serve, mas falta”. (Nilma Lacerda)

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