No sul o negro charqueou

lavrou

carreteou

no sul o negro remou teceu

o diabo a quatro

o negro no sul congou

bumbou

batucou

a negra no sul cozinhou

lavou

diabo a quatro

no sul o negro brigou

guerreou

se libertou

quer dizer: ainda se liberta

de mil disfarçadas senzalas

prisões

diabo a quatro

onde tentam mantê-lo agrilhoado

[…]

O fragmento do poema “Pelo escuro” (1977), de Oliveira Silveira, (d)enuncia a experiência do negro do Sul, uma figura que nem sempre está presente no imaginário nacional. O poeta e dono da frase carregada no título desta coluna é fundador do Grupo Palmares e um dos idealizadores do 20 de novembro – Dia da Consciência Negra. Oliveira Silveira é uma voz preta do Sul.

Longe do que comumente é retratado até os dias de hoje, o Rio Grande do Sul não é um estado habitado exclusivamente por imigrantes italianos, alemães, portugueses e seus descendentes.

Não é difícil acreditar nesta perspectiva embranquecida da identidade gaúcha, uma vez que a presença negra não é refletida nos monumentos históricos, as narrativas negras não são apresentadas nos livros de história, as figuras negras não são as que recebem os grandes prêmios, não possuem ruas carregando seus nomes e não são claras o suficiente para serem consideradas representantes da cultura “regionalista”.

Mesmo que negada, que não divulgada e que combatida através da política de embranquecimento, a presença negra e afro diaspórica no Rio Grande do Sul é muito forte e foi fundamental para a construção deste estado, edificado e mantido sob muito sangue negro.

Como reflexo deste apagamento histórico, Porto Alegre carrega a triste marca de ser a capital com a maior taxa de segregação racial do nosso país, segundo mapa publicado pelo Nexo Jornal em 2015. Além disso, a cidade tem a maior discrepância percentual de índice de desenvolvimento humano municipal – IDHM entre pessoas negras e brancas, alcançando o número de 18,2% de acordo com o Mapa dos Direitos Humanos, do Direito à Cidade e da Segurança de Porto Alegre em 2015.

Portanto, percebe-se a estruturalização do racismo que resulta na desigualdade de oportunidades ao povo preto e com isso a sua maior incidência nos territórios periféricos, sendo colocados à margem territorial e social.

Infelizmente, esta falta de visibilidade e oportunidades também se reproduz nos espaços ditos tradicionais de cultura, resultando na baixa representação de artistas e escritores negros em eventos literários ou das demais linguagens culturais. Porto Alegre, por exemplo, teve seu primeiro patrono de Feira do Livro apenas em 2020, apesar da importante contribuição de diversos autores e personalidades negros durante os anos.

Se esta representatividade não vem do poder público ou dos grandes eventos, cabe aos coletivos comunitários, organizados pela sociedade civil, a criação de espaços que permitam impulsionar vozes anteriormente silenciadas.

Seja através da literatura, música ou teatro, as expressões artísticas e culturais são essenciais para esta mobilização. Citamos aqui o trabalho da iniciativa cultural “Poetas Vivos”, que através de sua música “Toma Rajada!” apresenta no trecho “tem preto no Sul, toma!” o real sentido de todos os projetos afrocentrados gaúchos: nos apresentarmos, dizermos que estamos aqui e garantirmos a visibilidade que nos foi negada. Pois para nós não há dúvida, o povo preto existe e além de existir, ele escreve, ele lê, ele canta, ele dança e ele resiste através da arte!

Enquanto bibliotecas comunitárias, entendemos a responsabilidade social e cultural de apresentar através de ações ou do acervo a diversidade de vozes que compõem nossa periferia, município e estado. Portanto, é comum visualizarmos ações afirmativas e que tragam a representatividade como carro chefe no processo criativo e na produção de nossas atividades.

Assim, garantimos efetivamente um espaço democrático, inclusivo e que lute contra todo esse chorume que inunda nosso estado e país da melhor forma: auxiliando na formação do leitor e na construção de um sujeito consciente de seus direitos e de sua história.

Como exemplo desta prática, citamos o debate realizado pela Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), em parceria com a “Rede Beabah! – Bibliotecas Comunitárias do Rio Grande do Sul”, que contou com a temática “Vozes Pretas do Sul” e que serviu de inspiração para a escrita desta coluna. A live, ocorrida durante o dia mundial do livro, trouxe escritoras, profissionais e artistas negras que fazem de sua vivência e sua arte resistência.

Através de seus mais diversos atravessamentos, como orientação sexual, profissão, condição social e, obviamente, a racial, estas mulheres discutiram sobre as dificuldades enfrentadas por elas e apresentaram como se utilizam destes fatores em seus escritos e músicas. Caso você tenha interesse em assisti-la, ela encontra-se disponível no Instagram da RNBC (@redenacionalbc) e no canal de YouTube da Beabah!.

A chegada dos primeiros nativos africanos escravizados no estado ocorreu no ano de 1717. Desde então, somos muito além do que tentaram fazer de nós: somos Lanceiros Negros, Sirley Amaro, Lupicínio Rodrigues, Giba Giba, Nina Fola, Zudizilla, Lilian Rocha, Everaldo, Luiza Helena de Barros, Mestre Cica de Oyó, Ronaldinho Gaúcho, Ketlyn Vieira, Cristal e milhares de tantas outras vozes. De Pelotas, Rio Grande, São Leopoldo, da Cabo Rocha, Ilhota, Colônia Africana e Areal da Baronesa para a Rubem Berta, Restinga e Vila Jardim.

Como coletivo, seguimos na tentativa de amplificar as vozes e potências que aqui existiram e existem, afinal seria muita ingenuidade investir em um movimento para “dar voz” a uma comunidade que nunca esteve calada.

“Sou a bombacha de santo,

sou o churrasco de Ogum.

Entre os filhos desta terra

naturalmente sou um.”

(Pelo Escuro, Oliveira Silveira, 1977)

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