Há um ano exatamente dou aulas no ensino superior. Assumi, na UFC, a cadeira de Literatura Brasileira no curso de Licenciatura em Letras. Errante que sou nesse país, saí de minha segunda casa, o Rio de Janeiro, e vim morar em Fortaleza. Tudo novo para mim: a cidade com cara de moderna e muitos ranços de uma tradição conservadora, a exigente carga horária do ensino superior, a necessidade de leituras mais aprofundadas e, sobretudo, a tentativa de chegar como aprendiz. Somos todos aprendizes.

Os receios logo apareceram. Como dar aula de literatura a alunos que serão professores de educação básica (muitos já o são) e evitar que eles sejam reprodutores de um programa que privilegia ainda o conteúdo conceitual? Outro impasse: como desmitificar a noção de que o ensino superior é o lugar de formação de pesquisadores apenas? Afinal, como uma licenciatura, nosso objetivo não deveria privilegiar a formação de educadores? O que seria pensar a literatura para além das teorias, da crítica e da historiografia? Ou melhor, como colocar o texto literário como o centro do fazer pedagógico?

Os graduandos sentem o choque quando um professor chega dizendo que é preciso ter receio dos conceitos. Os alunos ficam em alerta quando o professor diz que é preciso desconstruir (embora tenham estudado a desconstrução em teoria, e sabem que ela existe há mais de meio século. Mas nem é essa desconstrução aí a que me refiro). Por que o ensino de literatura ainda valoriza as escolas literárias quando poderia já pensar em disciplinas (odeio essa palavra) que privilegiassem temáticas, ou obras, ou autores, ou gêneros discursivos?

Desorientados, os alunos tentam, no início, a qualquer custo, ser advogados das teorias. Dizem que se sentem perdidos quando vão às obras literárias sem auxílio de um especialista nelas. Afirmam que não é possível pensar literatura sem uma história e uma crítica sobre ela. Dizem, por fim, que não conseguem pensar o ensino da literatura assim, sem linearidade. Sei de tudo isso. Sei das teorias, das críticas, da história. Eu as estudei e continuo pensando nelas; mas não necessariamente apenas a partir delas.

Estamos mergulhados num momento cujo olhar sobre as coisas exige polivalência, não apenas uma mira, mas uma visão caleidoscópica. Ou seja, a boa e velha concepção ordinal (e ordinária!) cartesiana é mais fácil porque divide todos os conhecimentos em áreas específicas. Não se pode pensar em fronteira? Não se pode imaginar que o horizonte é que move nosso desejo não nos limitando ao agora? Eu leio o mundo aqui, onde estou, como estou, mas é para lá que se descortina minha leitura, para o que virá, ou simplesmente para o outro. Horizonte não é apenas aquela linha imaginária que se descortina ao longe numa ilusão de ótica. Além daquela linha, o que há? O desconhecido. Mas há também o horizonte para dentro de nós, essa linha que separa aquilo que já sabemos/enxergamos, daquilo que está fora do nosso alcance onde estamos. Há o horizonte de leitura, que une espaço e tempo em prol de um texto, por exemplo. O horizonte, ou futuro, ou aquilo que ainda não sabemos (o vir a ser/ver) nos desafia o tempo todo. E por isso precisamos andar e tentar atravessar as fronteiras, tateando terrenos que não nos são familiares. Isso é conhecer. Os conhecimentos (assim mesmo no plural) são de todos e de ninguém. Portanto, nenhum curso, nenhuma universidade, nenhuma teoria ou crítica vão encerrar o problema proposto em “por que precisamos conhecer?”.

Parece, entretanto, que conhecer ainda é pensado nos termos de acúmulo. Quanto mais depositarmos nas cacholas dos alunos (seres sem luz na etimologia da palavra), mais cumprimos nosso papel de educador. Ninguém discute o papel ético do conteúdo? Ninguém discute ferramentas autopoéticas para a aprendizagem? Por ferramentas autopoéticas quero dizer as práticas pedagógicas que não vejam o aluno com passividade, mas que o estimulem a ser autônomo. Por autonomia quero dizer a capacidade do sujeito de não se sujeitar a ser funil do outro, mas ser o outro do diálogo, nessa troca de saberes e experiências. Isso é ético. Alguns podem questionar: “mas nesse caso não existe mais um professor e um aluno”. E eu respondo que, nesse caso, o professor continua sendo professor, mas é também o aluno que ele nunca deixou de ser; e o aluno, sendo aprendiz, parte da dúvida para construir um percurso, que é orientado pelo professor, mas é “seu” percurso.

Autonomia, protagonismo, desconstrução da ideia de que só se aprende se fragmentar: são esses impasses que alimentam minha prática pedagógica desde quando, na minha primeira casa (o Maranhão) assumi essa condição de professor. E me frustro quando os graduandos de hoje (e também muitos colegas professores), em nome de uma suposta segurança intelectual, repetem as mesmas questões ininterruptamente, seja onde estiverem (no Maranhão, no Rio de Janeiro, no Ceará…): “essa escola de hoje não corre o risco de perder conteúdo?”; “e a preparação para o vestibular, para o ENEM, para os concursos, não ficará prejudicada?”, “misturar os saberes não seria afogar-se no superficial?”

Eu respondo: afogar-se na superfície não é seguir a cartilha do mesmo? Não seria fechar os olhos para uma coisa que está tão clara, que a escola continua cartesiana e apenas substitui as nomenclaturas para se mostrar contemporânea? Não seria morrer na superfície pensar que conteúdo é conceito apenas? Fazer teoria é bom, requer criticidade, requer levantamento de hipóteses, mas demanda, sobretudo, um saber-fazer aliado a um saber-ser. E estamos sabendo fazer? Estamos sabendo ser?

Aos alunos que me perguntam se a escola e a universidade não deveriam preparar para concursos, sou categórico: “é a vida que importa”. Para viver, meu filho, é preciso ser profundo; nada da nadar no seco.

Travessia e luta. Já percebi há algum tempo esse embate. Não à toa, quando digo que trabalho na UFC, as pessoas confundem e acham que faço parte do Ultimate Fighting Camphionship.

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