Conta a mitologia grega que o adivinho Tirésias vaticinou à Narciso, filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope, que este teria vida longa desde que jamais contemplasse a própria figura. Vaidoso e egocêntrico, Narciso deitou-se no banco do rio e definhou, olhando-se na água e se embelezando com sua própria imagem.
Em que pese as variações e os significados que a história/estória assumiu ao longo dos tempos, o Mito de Narciso acabou por simbolizar a vaidade, visto que este era insensível aos apelos das pessoas que o circundava, tendo olhos apenas para si mesmo, o que acabou por inaugurar a alcunha de narcisista aos gabolas.
Não obstante, na atualidade uma das formas mais comuns de manifestação do narcisismo é a vaidade intelectual, algo muito comum na vida acadêmica. Assim, se a água foi o espelho de Narciso, o Currículo Lattes pode ser a morte daqueles que nutrem uma vaidade exagerada em relação sua formação ou, pior, sua pseudo qualificação.
Para Carlos Decotelli, o ministro da Educação que nomeado, sequer chegou a ser empossado, essa é uma máxima que ganhou contornos dramáticos. Ao contrário do que seu currículo mostrava, Decotelli numa foi doutor, pós-doutor e mesmo a sua qualificação de mestre tem sido questionada, quando se aponta possíveis plágios em sua dissertação de mestrado.
Uma qualificação como a apresentada por Decotelli seria importante para o seu trabalho, mas certamente não seria determinante. O que pesou e o que pesa num fato como esse é a mentira mal disfarçada, como se os fins justificassem os meios, ou seja, para ocupar uma pasta da importância do Ministério da Educação e, pretensamente, fazer um bom trabalho, valia até falsificar o próprio currículo.
Fico imaginando qualquer cidadão que se propõe a ocupar um cargo no serviço público (ou mesmo na iniciativa privada) e este não só não cumpre as exigências do órgão para o qual concorre, como falsifica documentos para, criminosamente, diga-se de passagem, assumir uma vaga que poderia ser, para o bem da justiça, de alguém que realmente batalhou para estar ali.
Agora o mais importante é dizer que este fato não é revelador apenas da personalidade de Decotelli, mais da própria natureza desse governo, forjado na mentira, como bem apontou a relatora da CPMI das fakenews, a deputada Lídice da Mata (PSB/BA), em recente entrevista à Biblioo, quando asseverou que as notícias falsas foram determinantes para a eleição de Bolsonaro em 2018.
Não se pode esquecer que os dois ministros que antecederam Decotelli no MEC, Ricardo Vélez Rodríguez (que disse que não houve golpe militar) e Abraham Weintraub (que disse as universidades tinham “extensas” plantações de maconha), se utilizaram de forma reiterada do expediente da mentira como forma de desqualificar a educação e o conhecimento, exatamente os insumos pelos quais deveriam zelar.
Vélez Rodríguez, a propósito, “errou” 22 vezes em seu currículo Lattes, como apontou o site Nexo, quando repetiu inúmeras vezes inconsistência, como “esquecer” de acrescentar coautores de seus textos como, por exemplo, ter citado como de sua autoria única o livro “Formação e Perspectivas da Social-democracia”, que na verdade foi organizado pelo diplomata Carlos Henrique Cardim, docente do Instituto Rio Branco.
A propósito, a Revista Exame publicou recentemente uma reportagem que mostra os ministros do governo Bolsonaro que mentiram no currículo, dentre os quais estão além de Decotelli, Vélez Rodríguez e Weintraub, a Damares Alves, que disse ser mestre em educação e em direito constitucional, quando na verdade não tinha nem um nem outra, e Ricardo Salles, que se dizia mestre em direito público pela Universidade Yale, título negado pela instituição americana.
De volta a Decotelli, só o tempo poderia dizer se ele seria um bom ministro da Educação, mas ele mesmo, em nome de uma vaidade narcísica, acabou por enterrar suas pretensões e, de quebra, manter a Educação brasileira nessa eterna incerteza. Incerteza, aliás, iniciada com o governo Bolsonaro e que, oxalá, acabará tão logo esse governo de ignorância cair.