Embora muitos anos tenham se passado desde o fim do instituto da escravidão no mundo dito civilizado (e o Brasil foi o último a aderir, diga-se de passagem), o imaginário social moldado por uma lógica caucasiana, imperialista, heterossexual e cristã parece ter saudades dos tempos em que mantinha os pretos e pretas trancafiados no cativeiro, dando-lhes um tratamento peculiar a seres desprezíveis, em que toda forma de humilhação parecia pouca.
O abolicionista Joaquim Nabuco, em sua obra mais celebrada (O Abolicionista), deixou-nos a seguinte reflexão: “a influência da escravidão não se desenraiza num dia”. Eis uma verdade inconteste! Não são poucos os casos de racismo velado em nossa sociedade, cujo discurso oficial é de que não existe racismo, que isso é mimimi de gente que adora se vitimizar! Bom, a gente pode começar a reflexão proposta para este texto com alguns casos relatados pela mídia nacional e internacional. Vamos a eles.
No mês da consciência negra, durante uma partida de futebol na Ucrânia, o jogador Taison foi hostilizado com discursos racistas pela torcida do Dínamo. Revoltado com a situação sofrida e com a inércia do árbitro que, segundo recomendações da FIFA, pode suspender a partida, o jogador mostrou o dedo do meio para os torcedores, chutando em seguida a bola contra os mesmos. Somente nesta hora o árbitro vestiu-se de autoridade no campo e expulsou o jogador da partida.
Ainda no campo esportivo, no dia 22 de novembro último, na cidade de Lima no Peru, torcedores do Flamengo, celebrando a boa fase do time na temporada, além de, no dia seguinte, disputar uma final de Libertadores da América depois de 38 anos, foram insultados por um pequeno grupo de torcedores do River Plaite da Argentina que imitavam macacos e apontavam para os torcedores do Flamengo. Tal atitude quase acabou em pancadaria no momento que os torcedores do time brasileiro perceberam e forma tirar satisfações com os argentinos. Infelizmente isso é bem comum em competições sulamericanas, e o alvo, não raro, são os jogadores negros do Brasil.
No dia 10 de novembro em Belo Horizonte (MG), um princípio de confusão entre torcedores do Atlético Mineiro e Cruzeiro gerou mais um caso de racismo no esporte aqui no Brasil. O segurança Fábio Coutinho, fazendo o que ele e os demais seguranças foram contratados para fazer, ou seja, impedir que torcedores entrassem em conflito belicoso, dando segurança para esses e os demais, foi covardemente insultado por Adrierre Siqueira da Silva e seu irmão Natan Siqueira da Silva.
O primeiro, ao ser impedido pelo segurança de passar para um local do estádio que não era destinado a ele, cuspiu na direção de Fábio. Não obstante, começou a dizer para o segurança: “olha pra sua cor, seu preto, seu preto…” num tom bem peculiar de pessoas que usam a tonalidade da pele de outras, visando ridicularizá-las. O segundo personagem desta história (Natan), dirigiu-se ao segurança chamando de o macaco, o que ele nega veementemente; segundo o acusado, ele chamou o segurando de palhaço! Na delegacia ambos negaram as ofensas proferidas, e disseram que não são racistas, e que um negro corta o cabelo deles a mais de 10 anos…
Saindo do campo do esporte, mas não do campo do preconceito contra o povo preto, no último dia 20 de novembro, dia da consciência negra, uma chuva de mensagens invadiram as redes sociais reivindicando que não celebrássemos mais o dia da consciência negra, mas sim o dia da consciência humana. Eu confesso que não tenho a mínima paciência para este tipo de discurso raso de quem sempre deteve os privilégios sociais; pior é ver pretos e pretas dando chancela para este tipo de fala.
Enquanto houver vagas de emprego sendo oferecidas, em que as exigências descartam pessoas negras e gordas (para ficar em um exemplo ocorrido recentemente); enquanto não vermos apresentadores, artistas, presidentes, influenciadores, empresários pretos e pretas; quando a massa carcerária deixar de ter apenas um tom de pele, quem sabe a gente repensa se deve ou não ter um dia da consciência negra!
Falando em consciência negra, um senhor de nome Sérgio Nascimento de Camargo, negro retinto, assumiu a presidência da Fundação Palmares, e já chegou dando close erradíssimo! O dito senhor, dentre outras alucinações ideológicas extremistas, disse que não precisava ter um dia da consciência negra, pois este feriado causava uma perda incalculável para a economia nacional; que sentia vergonha da negrada militante, um bando de manipulados pela esquerda; que o racismo no Brasil era nutella, que racismo mesmo era nos Estados Unidos (a vassalagem é tão grande que até o sofrimento em dólar é maior do que o nosso!); que a escravidão foi terrível, mas que os descendente de escravizados no Brasil foram beneficiados e vivem melhor do que os negros de África; além de partir para ofensa pessoal ao Martinho da Vila, Gilberto Gil, Camila Pitanga, Preta Gil… Eu pergunto se alguém precisa de inimigo tendo um capitão do mato como este?!
Acredito que tudo o que já foi descrito neste texto já serviria de base para termos a certeza de que o racismo não acabou nem no Brasil e nem no mundo, mas eu não posso simplesmente terminar esta reflexão sem fazer menção a chacina que ocorreu no pobre e preto bairro de Paraisópolis, na capital paulista, em que nove jovens, em sua maioria pretas e pretos, foram assassinados por conta de uma incursão criminosa da Polícia Militar.
É claro que estas coisas só ocorrem em favela, onde mais de 90% da população é constituída de pretos e pardos. É lógico que a “justificativa” da PM é que foram combater o tráfego de drogas (no varejo), e neste caso a mim mostra-se pior, porque os soldados alegaram que foram atacados por dois elementos em uma moto que entraram na comunidade e se esconderam no baile funk que tinha mais de 5 mil pessoas. Em suma, a polícia jogou bomba, atirou com armas ditas não letais, deu porrada em geral, proporcionou correria e pânico que resultou na morte de nove pessoas que nada tinham a ver com a operação e não prendeu os dois “meliantes!”
Por essas e outras que é preciso lutar e jamais dar um passo atrás! Não há diálogo com quem acha que pode usar de racismo para diminuir as pessoas. Não dialogo com racista e gente eivada de preconceito. Não passarão! Não há a menor possibilidade de terminar este texto sem parte da letra de Haiti, do Caetano Veloso, que diz assim: “e ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina…”