Os argumentos de quem é favorável à livre circulação e ao acesso gratuito à informação são válidos e devem ser examinados com a mente voltada para o preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “1.Toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. 2. Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria” (artigo 27º).
As duas seções do artigo se complementam. É livre a fruição e participação de tudo que os cidadãos criam nos campos do saber e das artes, desde que a eles seja assegurada a proteção dos interesses morais e materiais daquilo de que são autores. Os interesses morais estão protegidos, na legislação, pelo direito moral, que trata da questão da autoria e das fraudes, falsificações ou adulterações. O direito moral é inalienável. As violações do direito moral dizem respeito quase sempre a plágios e à não consignação dos créditos de trabalhos citados. É um território que é detectado mais amiúde em trabalhos científicos, especialmente quando passam pela avaliação prévia de especialistas.
A especialização e a fragmentação do território da pesquisa científica fazem com que as comunidades de especialistas formem grupos relativamente pequenos e com alto índice de conhecimento recíproco. Isso facilita a descoberta do plágio. Situa-se nesse campo também as traduções de quaisquer textos, as quais são pirateadas por editoras inescrupulosas. As traduções também são protegidas pelo direito autoral.
Acredito que só ocasionalmente os bibliotecários têm algo a ver com as infrações ao direito moral. A não ser nos casos em que eles próprios são autores de documentos, devendo, portanto, atentar, na sua elaboração, para as obrigações de ordem legal e ética.
A área pantanosa em que bibliotecas e bibliotecários correm o risco de cometer infração ou serem acusados de cumplicidade está no direito patrimonial, que corresponde aos interesses materiais dos autores. A legislação não se limita aos direitos do autor, incluindo outros elos importantes da cadeia de produção do livro e de outros produtos assemelhados. As editoras que não adotam o sistema em que o autor paga todas as despesas de produção do livro são extremamente vulneráveis ao desrespeito à lei.
É comum o infrator da lei justificar-se com argumentos que enaltecem a) a importância da livre circulação de ideias; b) a necessidade de socialização do conhecimento; c) o reconhecimento de que ninguém produz conhecimento sozinho, sem o apoio da comunidade e da infraestrutura que a sociedade lhe proporciona e, portanto, é espúria a reivindicação de pagamento por algo que não lhe pertence. Há outros argumentos, que não é preciso acrescentar.
Sim, podemos concordar com tudo isso. Mas, independentemente da questão de termos que obedecer às leis em sua plenitude, é preciso, para continuar o debate, que respondamos à seguinte pergunta: quem paga à editora pelo trabalho de publicar o livro? Por favor, excluam as editoras da categoria vanity presses, aquelas que aceitam financiamento de órgãos públicos, como as fundações de amparo à pesquisa e às artes, e as que trabalham com livros didáticos adquiridos em massa por programas governamentais e as já citadas em que o autor arca com todas as despesas.
Se uma editora edita um livro, assumindo o risco por isso, ali colocando seu capital, é porque ela espera recuperar o investimento feito, com o lucro aceitável nesse ramo da indústria (entre 10 e 12%), e destinar uma parcela disso à edição de novos títulos. Se suas edições não forem vendidas o capital não será recomposto e faltará dinheiro para lançar novos títulos, a não ser que o editor seja adepto de jogos de azar e resolva aumentar o valor da aposta, acreditando na sorte. A história está cheia de falências de empresários que acreditaram na sorte.
As edições não são vendidas por várias razões. A primeira delas é a má escolha do livro que será editado. A seleção de um livro para edição não é um processo regido por leis infalíveis. Erros e acertos não são previsíveis.
A segunda razão é que um livro de sucesso pode acabar gerando uma demanda de cópias piratas que impedem a comercialização da obra original. Afinal de contas, a pirataria também respeita as leis do mercado. Se não há demanda, não haverá procura. Quer dizer, ninguém vai perder tempo pirateando um livro sem valor algum. O sucesso é a causa do fracasso.
Essas cópias piratas não mais se restringem às que são feitas na copiadora da esquina. Agora elas são versões digitalizadas colocadas em plataformas de compartilhamento gratuito de arquivos. Conheço casos em que a cópia pirata de um livro foi baixada mais de mil vezes. Quem ganhou com isso? O autor ganhou algo? A editora foi remunerada? E quem pagou pelo serviço de digitalização?
Acredito que cabe aos bibliotecários colaborar na educação da clientela da biblioteca sobre a lei de direito autoral. Afinal, não causa boa impressão dar de cara com um livro digitalizado circulando na internet com o carimbo que identifica a biblioteca de origem. É lógico que a biblioteca não é cúmplice desse ilícito. Mas, como aliada que deve ser de autores e editores, talvez ela possa orientar os leitores sobre o devido respeito à lei. Isso inclui a orientação aos professores sobre o uso justo e legal das “pastas do professor” onde são colocadas cópias de materiais de leitura destinadas aos alunos.
Nada contra os samaritanos que colaboram para levar à prática a recomendação de Castro Alves para que sejam abençoados os semeadores de livros. Só que um dia poderá não haver livros novos para semear.