Fernando Morais. Imagens: Caricatura Camaleão/Ricardo Stuckert/Arquivo Pessoal.

Fernando Morais. Imagens: Caricatura Camaleão/Ricardo Stuckert/Arquivo Pessoal.

Por Clarissa Carvalhaes, do Hoje em Dia.

Das muitas lembranças que tem de Mariana, cidade onde nasceu, o jornalista Fernando Morais recorda das peraltices de criança: corria das varadas da avó pelas ruas da cidade histórica e pegava passarinho na companhia dos primos.

Hoje, quase aos 70 anos, é um dos biógrafos brasileiros mais respeitados por público e crítica. No mercado editorial, está entre os escritores que mais comercializa livros no Brasil e em mais 19 países. Entre obras de destaque estão “Olga”, “Corações Sujos” e “Chatô”.

A paixão e o domínio sobre as palavras começou cedo: aos 20 anos já tinha faturado seu primeiro Prêmio Esso – ao todo foram três. Aos 30 conseguiu o furo de entrevistar o líder cubano Fidel Castro – um feito raro até para os dias de hoje.

Mas é com olhos voltados sobre a tragédia que matou 17 pessoas e deixou centenas de famílias desabrigadas em Mariana que a entrevista com este mineiro começa. Com atenção à cidade natal, Fernando revela um projeto antigo: quer criar a “Casa Mariana”, lugar que vai abrigar boa parte do seu acervo. São cerca de 4 mil livros, documentos, depoimentos e entrevistas acumuladas em 50 anos de trabalho como jornalista.

Ativista e ícone político, não há dúvidas de que ele já tenha reservado seu lugar na história de Mariana, no legado do jornalismo e, claro, no coração das netas Clarisse, Helena e Alice.

Há pouco mais de dois meses, Mariana foi berço da maior tragédia ambiental da história do Brasil. Nascido e criado na cidade histórica, como você se sentiu ao ser informado sobre o rompimento da barragem da mineradora Samarco, em novembro do ano passado?

O primeiro sentimento foi de preocupação com a sorte das pessoas atingidas pelo desastre. Depois, de muita raiva. A insensibilidade e desfaçatez com que a Vale e a Samarco estão tratando o assunto é inacreditável. Essa gente deveria estar na cadeia. Um horror.

Bento Rodrigues foi o vilarejo mais atingido pelos rejeitos da lama. Você conhecia a região? Poderia reconstituir sua infância em Mariana?

Só fui a Bento Rodrigues uma vez, já adulto, com um grupo de escritores brasileiros e cubanos. Um lugar lindo. Eu saí de Mariana aos quatro anos, mas voltei incontáveis vezes para passar as férias na casa dos meus avós paternos, seu Niquinho e dona Nenêga, e dos meus tios Walter e Maria das Dores. Entre outras aventuras, eu pegava passarinhos que depois iam penar nas gaiolas feitas pelos presos da cadeia da cidade. Aquilo me parecia um negócio inexplicável: o sujeito estava preso e ganhava a vida fazendo prisões para passarinhos. Quando eu ou meus primos saíamos da linha, vovó Nenêga nos corrigia com seu célebre e eficiente método pedagógico: surras de vara de marmelo. Mesmo com as surras, as lembranças que guardo de Mariana são inesquecíveis.

Você tem interesse em doar seu acervo para Mariana. Como pretende fazer isso?

Eu alimento esse projeto há alguns anos. O acervo compreende uma biblioteca de cerca de 4 mil livros, a maior parte de não-ficção e com um foco muito forte em Brasil e América Latina; documentos, depoimentos e entrevistas que acumulei em 50 anos de trabalho como jornalista, deputado, escritor e ativista político; gravações de entrevistas que realizei para todos os meus livros e dezenas de reportagens.

Algum material que chama mais atenção?

Há coisas interessantes, que vão desde os áudios de entrevistas com personalidades – entre outros, Luís Carlos Prestes, Fernando Collor, Fidel Castro, Ulysses Guimarães, José Sarney, Alfredo Stroessner, Yasser Arafat, Eric Hobsbawn… – até acervos históricos, como, por exemplo, três décadas de correspondência trocada entre Carlos Lacerda e seu advogado Fernando Veloso (doador do material). Há também uma coleção de algumas centenas de fotos jornalísticas. E tem, claro, muita coisa curiosa e sem valor, que eu chamo de “fetiches políticos” – como a placa original do carro dos pistoleiros da rua Tonelero, o relógio de ouro que o líder Muammar Kadafi me deu (com o rosto dele estampado no mostrador), uma caixa de charutos de prata portuguesa com uma dedicatória a mim do Fidel Castro, gravada na tampa, um taco de beisebol com um bilhete escrito nele pelo presidente Hugo Chávez.

E como o local vai funcionar?

A Casa de Mariana será um centro de debates, especialização e reflexão para jornalistas, estudantes de letras, de história e de cinema. Já temos a garantia de workshops regulares a serem ministrados em Mariana pelos seguintes profissionais:

• Anthero Meirelles, ex-jornalista, economista e diretor do Banco Central: oficinas de trabalho para jornalistas especializados em economia.
• Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor: oficinas sobre jornalismo e literatura.
• João Batista da Costa Aguiar, artista gráfico: oficinas sobre “a feitura de um livro, da capa ao miolo”.
• Tatiana Quintella, documentarista, produtora e diretora da Popcom filmes: workshops de produção cinematográfica.
• Alberto Villas, jornalista e escritor: oficinas sobre o tema “Imprensa alternativa no Brasil durante a ditadura militar”.
• Daniele Ottobre, cineasta italiano especializado na temática socioambiental: oficinas de trabalho sobre o tema “cinema documental e ambientalismo”.
• Afonso Borges, jornalista e produtor cultural: duas vezes por ano seu vitorioso projeto intitulado “Sempre um Papo” será realizado na casa de Mariana.
• Fernando Morais: oficinas sobre reportagem, jornalismo investigativo e jornalismo literário.
• Deonísio da Silva, filólogo e escritor. Vai ministrar oficinas sobre dois temas: uma sobre a origem de palavras e expressões, e outra, intitulada “narrativas curtas”, para ensinar estudantes de jornalismo e de letras a contar uma boa história.

E o que falta para tirar o projeto do papel?

Ainda estamos correndo atrás do principal: conseguir recursos para comprar a casa e adaptá-la para a instalação do acervo (a garagem do andar térreo, por exemplo, seria transformada em uma livraria). Eu preferiria, se possível, não fazê-lo via leis de incentivo fiscal. Nada contra, mas como sou um ativista político, isso poderia dar margem a interpretações equivocadas. Estou conversando com gente que pode ajudar nisto. As demais colaborações, que já estão surgindo, com enorme repercussão, serão de profissionais que se disponham a dar minicursos e oficinas.

Jorge Amado afirmou certa vez que toda adaptação de um livro para o cinema é uma violência contra o livro. Você, ao contrário do baiano, já disse ter aprovado o resultado de duas obras que foram para as telonas: “Olga” e “Corações Sujos”. Recentemente, “Chatô” saiu do papel. Qual a sensação ao assisti-lo? Valeu a pena esperar 20 anos para ver essa obra ganhar vida no cinema?

Quando um autor vende os direitos de adaptação de um livro para o cinema ele tem que saber que livro é livro, filme é filme. A chamada liberdade dramatúrgica é infinita. No meu caso, que só escrevo não-ficção, o único limite que se impõe ao roteirista e ao diretor é o respeito à História, já que se trata de uma narrativa de fatos reais. Gostei das três adaptações dos meus livros, a despeito da diferença de leitura que cada diretor teve. E gostei muito do “Chatô”, do Guilherme Fontes, um filme delirante. Valeu a pena esperar vinte anos.

Ainda sobre “Chatô”: a crise no jornalismo se agravou nos últimos tempos. Para você, como Assis Chateaubriand reagiria a um momento como este?

Estou acompanhando e apoiando o movimento dos jornalistas. Não sei dizer como Chateaubriand reagiria a isto se fosse vivo. Certamente, porém, diria que por trás disso está o movimento comunista internacional – ou a “canalha vermelha”, como ele costumava dizer.

E qual o futuro do jornalismo? Quais os caminhos que os jornais devem seguir para não morrer diante da internet?

Não sei se viverei o suficiente para ver isto, mas jornal vai acabar, livro vai acabar e televisão vai acabar. Esses três veículos, como nós os conhecemos, estão com os dias contados. Isso me lembra um profético verso de Gilberto Gil, concebido ainda nos anos sessenta: “O jornal de manhã chega cedo/Mas não traz o que eu quero saber/As notícias que leio, conheço/Já sabia antes mesmo de ler.” Na mosca.

Você trabalhou durante muitos anos em redação de jornal impresso. Isso ajudou o afinar o faro para descobrir boas histórias? Como você sabe quando uma história vale um livro?

Acredito que todo profissional que dedicou a vida a seu metier, como é o meu caso, acaba desenvolvendo um sentido adicional. Um alfaiate experiente pega uma peça de casimira e só de pegar sabe se o tecido dará ou não um bom terno. Um bom pedreiro sabe se a casa vai ficar de pé ou se vai cair – só de pegar um tijolo ou um saco de cimento. Em geral – não é sempre, claro – um repórter experiente bate o olho num assunto, ou num personagem, e já antevê se dali sai uma reportagem, um livro, um roteiro de cinema. Ou se não sai nada.

Você conseguiu entrevistar Fidel em 1976 e assinou a reportagem  Transamazônica (1970) com a qual faturou seu primeiro Prêmio Esso. Qual a reportagem ou o livro que não apenas te fez crescer como ser humano e profissional, mas que também foi capaz de te envaidecer profundamente?

Gosto igualmente de todos meus livros. Se tivesse que reescrevê-los, não mudaria uma vírgula. A série de reportagens sobre a Transamazônica, escrita em parceria com outro mineiro, Ricardo Gontijo, foi muito marcante para mim. Não só porque tive a sorte de ganhar o Prêmio Esso com pouco mais de vinte anos de idade, mas também porque ela se converteria no meu primeiro livro, publicado pelo Caio Graco, da editora Brasiliense.

Você é considerado por especialistas como um dos grandes biógrafos brasileiros. A cada obra lançada é notável sua evolução como autor e pesquisador. É possível definir alguma figura que tenha corroborado em definitivo para essa sua trajetória?

Machado de Assis, Thomas Mann, Gabriel García Márquez e os gringos do chamado “new journalism” (Truman Capote, Gay Talese, Tom Wolfe, Norman Mailer, Tad Szulc…) exerceram enorme influência sobre o meu trabalho. Embora eu tenha sido copidesque, pauteiro, editor, chefe de reportagem, o que me seduzia mesmo era a reportagem. Sem preferência por nenhum tema, particularmente. Salvo futebol e economia, área nas quais sou analfabeto, gostava de fazer o que caísse na mão. De polícia a política – temas que hoje, aliás, andam de mãos dadas…

Nos últimos tempos, especialmente no governo da presidenta Dilma Rousseff (PT), Polícia Federal e Judiciário têm conseguido atuar de forma decisiva quanto ao futuro da política brasileira. Pela primeira vez, discutimos abertamente sobre a corrupção ativa (de empresários) e não apenas passiva (dos políticos). Ao mesmo tempo, ouvimos o pedido de retorno da ditadura de um número significativo de eleitores insatisfeitos com a situação atual. Nunca as feridas da corrupção foram tão expostas ou nunca a falta de ética foi tão escancarada. As investigações e denúncias se aproximam cada vez mais de homens que fazem parte da história do país, como os ex-presidentes FHC (PSDB) e Lula (PT). Considerando esses pontos e outros muitos não citados, como você enxerga o desenrolar da política atual e quais as suas expectativas para esse 2016?

Tenho esperança de que as coisas vão melhorar. De onde eu tirei isso? Não foi, claro, dos jornalões e das tevês, pregoeiros do quanto pior, melhor. Tirei de dados bem objetivos. Primeiro: a crise política perdeu o fôlego e quem apostava no impeachment da presidente Dilma Rousseff deu com os burros n’água. Um pessimista dirá, de dedo em riste: e a crise econômica? Pois eu respondo: a crise começa a amainar e os primeiros números deste ano são animadores. Olha só: a balança comercial teve um superávit de 12 bilhões de dólares – ou seja, exportamos 12 bilhões a mais do que importamos. Quer mais? O IBGE informou que a safra do ano passado bateu todos os recordes, com quase 210 milhões de toneladas de grãos. Para o insuspeito economista Luis Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro de FHC, “o governo reconheceu seus erros, e a confiança voltará, como já voltaram as oportunidades de investimento.” O Brasil é muito maior e muito melhor que a maioria de seus políticos.

Nos próximos meses você completa 70 anos de idade. Desses, 50 foram vividos em São Paulo. Ainda assim posso dizer que alma do Fernando permanece mineira?

Claro que sim. Minas é para sempre.

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