Ler não é teatro. Embora toda peça de teatro “seja” antes um texto escrito. Ler não é cinema. Embora o roteiro escrito preceda todo filme. Ler não é contação de histórias. Embora a contação de histórias preceda em muito a cultura escrita e inúmeras histórias que antes eram contadas estão escritas.  Ler não é cantar. Embora as canções partam de uma letra escrita. Ler é ler. E tudo o que se lê está, sem dúvida alguma, escrito sobre um suporte. Já usamos alguns naturalmente disponíveis – as paredes das cavernas, nossas primeiras bibliotecas – inventamos muitos mais: paredes, argila, papiro… papel e não tão agora a tela digital. 

Vamos ao teatro para assistir peças teatrais, com sorte chegar perto de atores e atrizes, sair e encontrar com amigas(os), comentar sobre nossas impressões ou espantos sobre o que vimos, embora não tenhamos farto acesso a teatros no Brasil. Vamos ao cinema para assistir filmes, mesmo e apesar de há muito ser possível assistir em casa – para quem dispõe de recursos para um bom pacote de internet paga e canais fechados idem. Vamos às casas de show para ouvir música e também com alguma sorte chegar perto dos cantores e das cantoras do coração, compartilhar aplausos com amigas(os) e gente ao nosso redor, mobilizadas(os) por ritmos e sons que nos encantam.  E mesmo aqui estamos tratando de acesso restrito a quem tem esta oferta cultural por perto e pode pagar por ela. 

E… vamos às bibliotecas, ou deveríamos, para acessar livros e ler gratuitamente, encontrar leitoras(es), falar e compartilhar impressões sobre autores, autoras e histórias, conhecer tantos outros e tantas outras, falar dos nossos encantos e espantos, dos nossos arrebatamentos, quem sabe ver de perto autores e autoras de nossa predileção ou recém descobertos(as); vamos para ler sozinhas(os), com e para outras(os) leitoras(es), descobrir novas leituras. Livros à mão cheia, como queria o poeta Camões. Em um país como o Brasil, em que a cultura escrita em sua plenitude somente é oferecida a uma faixa da sociedade que pode comprar livros – e mesmo assim a circulação de diversidade e representatividade é baixíssima, além da qualidade do que se lê – a escola e a biblioteca se tornam instituições decisivas para que o acesso aos livros e à formação leitora cheguem, de fato, para todas(os).

Bom, o fato é que ninguém nasce leitor(a); a leitura é uma habilidade e um comportamento construídos por meio de práticas sociais de leituras desde a primeira infância. Somos, por exemplo, primeiro, leitoras(es) de ouvir. Histórias que são lidas para bebês ainda no útero materno são preciosas para a construção da linguagem, como indicam pesquisas da neurobiologia. A relevância das histórias lidas neste momento – e também em qualquer outro – tem a ver com o fato de que escritoras(es) de literatura são artífices da palavra e a seleciona com intencionalidade, oferecendo cadência e ritmo poéticos. Estas palavras são transportadas até o bebê pela voz afetuosa da mãe, do pai, de quem está lendo para ele naquele momento.  É como se o bebê estivesse afinando os ouvidos para o que escutará – e depois falará – durante a vida

Aprender a ler e a apreciar ler – entendida como meio de acesso ao conhecimento e à fruição – não pode ser uma questão de sorte, como é tão comum em nosso País, que registra índices assustadores de alfabetismo funcional: apenas 12% da população brasileira alfabetizada, entre 15 e 64 anos, é plenamente proficiente,  ou seja, tem a “habilidade de ler, compreender, tomar decisões e argumentar a partir da avaliação de diversas variáveis e bases textuais”, segundo dado do Índice de Alfabetismo Funcional de 2018. 

A leitura é transversal na educação e a garantia plena de acesso às bibliotecas em escolas abertas à comunidade, que são recursos formadores indispensáveis, deve ser priorizada no âmbito da política pública e social. A biblioteca na escola, por exemplo, ainda é o principal lugar de acesso aos livros para 64% de crianças e jovens brasileiros (Retratos da Leitura, 2015). Contudo há concretos fatores inibidores para que brasileiras(os) leiam mais e cada vez melhor: 53% das escolas públicas do País não têm bibloteca/sala de leitura. E sabemos, ou nem sabemos, a precarização em que se encontram as existentes. 

Há pesquisas que demonstraram o impacto positivo que uma boa biblioteca na escola pode proporcionar à aprendizagem – o que inclui aspectos relacionados ao conforto do ambiente, acervo de qualidade, diversificado e constantemente atualizado e a presença de profissional ofertando atendimento e promovendo práticas diversificadas de leitura -, logo não há porque não priorizar sua universalização a partir de uma programação sustentável de curto, médio e longo prazo.  

Esta carência de bibliotecas em escolas foi a razão do lançamento, em 2012, da “Campanha Eu Quero Minha Biblioteca”, focada em articulação, pesquisa, produção e disseminação de conteúdos que informam sobre como a administração pública pode atuar em prol da garantia deste direito e caminhos de incidência da sociedade civil. Acesse. Conheça. Use. Compartilhe. Siga nas redes sociais (aqui e aqui).

É preciso ler e educar para ler “para além do cotidiano imediato, com níveis de complexidade variada, o que envolve a esfera de produção intelectual relacionada com a escrita, relativa à interação com os conhecimentos e valores formais, às ciências, às artes, à formação e ao estudo”, diz o professor Luiz Percival Leme de Britto, um dos mais renomados pesquisadores da área.  A biblioteca é esse lugar educativo, de acesso gratuito ao conhecimento estruturado pela escrita em livros, impressos ou digitais – infelizmente, no Brasil, ainda não dispomos de uma política robusta para viabilizar empréstimos de livros digitais. E esta é uma das boas respostas que deveríamos também buscar para ampliar ainda mais o acesso aos livros, que poderiam ser baixados em vários suportes digitais, como os celulares. 

Um professor consciente, mas sem livros pode fazer pouco e pouco fazem os livros se não podem apropriar-se deles, em sentido profundo, os professores” – Maria Tereza Andruetto

O desafio para a construção de cultura leitora no Brasil demanda um planejamento ajustado à sua superação e à compreensão de que devemos atuar de forma cooperada e integrada, famílias e escolas, sociedade, setores governamental e privado, para criar e assegurar a sustentabilidade de uma política pública de biblioteca que, de fato, contribua para a promoção do avanço dos indicadores de proficiência leitora e educacionais, que tenha elevado poder de cobertura e impacto positivo. 

Neste sentido, a biblioteca em escola aberta à comunidade é uma estratégia inteligente e necessária, porque garante o contato cotidiano com livros, leitoras(es) e leituras à comunidade escolar ao longo de toda a jornada acadêmica, assegurando sustentabilidade para a constituição de cultura leitora. Ao mesmo tempo oferece oportunidade para que familiares e membros da comunidade local tenham acesso assegurado aos livros e possam, ao mesmo tempo, atuar como parceiros da escola na formação leitora de crianças e jovens e serem, eles mesmos, atendidos por política pública de leitura. Há muitos lugares neste País, mesmo centros urbanos, em que a escola é o único lugar de acesso à cultura e à educação. Uma ação integrada escola/comunidade é uma forma inteligente de viabilizar e agilizar a oferta pública de livros e leituras.

A capacidade das bibliotecas de promover a leitura depende diretamente do uso que se faz delas. E o uso será cada vez mais intenso quanto melhor for a qualidade dos serviços prestados. E daí derivarão outros impactos.  Em 2013, o Instituto Ecofuturo reuniu cerca de 30 profissionais de organizações governamentais e não governamentais atuantes nas áreas de educação, pesquisa e biblioteca para debater o que deveria ser considerado para viabilizar leitura e escrita de qualidade para todos e a biblioteca está, sem dúvida, associada à possibilidade de atingir este objetivo: “programas que incentivem e facilitem a utilização efetiva das bibliotecas disponíveis devem ser parte de uma política de promoção da leitura, em particular as ações ligadas à promoção de atividades de leitura nas bibliotecas e ao incentivo à interação entre leitores”. 

Portanto, a pergunta que devemos fazer não é se precisamos de bibliotecas, mas sim de qual biblioteca precisamos para a educação de qualidade que queremos. Desenhar uma colaboração inter e intrassetorial, com o apoio da iniciativa privada, com vistas a assegurar complementaridade máxima ao investimento público, parece ser uma solução importante, urgente e sustentável. É preciso que a educação para a leitura e escrita para todas(os) seja um tema de prioridade nacional, onde evidentemente a biblioteca na escola aberta à comunidade tem um lugar central. 

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