Recebi, no final de 2019, do Raphael Cavalcante, um grande amigo e excelente bibliotecário, o convite para fazer a curadoria da segunda edição do Bibliofest – evento de leitura, informação e literatura promovido pela Associação de Bibliotecários e Profissionais da Informação do Distrito Federal (ABDF).
Como colaboração para minha primeira experiência na curadoria de um festival do tamanho do Bibliofest, trago as milhares de horas de aprendizado no atendimento e mediação de bibliotecas públicas, nos acertos e falhas que a interação com pessoas, histórias e processos históricos me proporcionaram.
Estar no chão de fábrica das bibliotecas nos dá uma grande noção da importância que carregamos na efetivação de um espaço da esfera pública democrática, o público é o grande agente de transformação, cabe ao bibliotecário mediar e estar atento a essas possibilidades de transformação.
A experiência na curadoria foi uma rica oportunidade, que me permitiu, entre outras coisas, aprender sobre as possibilidades do fazer bibliotecário para além das formalidades que são impostas à nossa profissão.
O Bibliofest se pauta pelos eixos ensejados na Agenda 2030 da ONU. E do que se trata a Agenda 2030? Segundo o conceito veiculado nas páginas oficiais da ONU, a proposta é organizar um plano de ação que envolva a sociedade civil, os governos e o setor privado e que está expressa em dezessete objetivos de desenvolvimento sustentável, que visam erradicar a pobreza e combater a desigualdade.
É um desafio enorme que, a meu ver, deve estar conectado à construção de políticas públicas e às ações concretas dos diversos estados para que haja real efetividade.
A parte mais gratificante de estar ao lado de Cristiane Salles, educadora e consultora literário de Brasília, e do próprio Raphael, na curadoria do festival, foi poder planejar, em conjunto, um evento que pudesse demonstrar a potência da diversidade, das várias leituras de mundo e dos múltiplos caminhos que o universo da leitura, da literatura e da democratização da informação podem proporcionar, tendo como principal matiz o quanto toda essa potência circula diariamente em nossas bibliotecas, centros de informação e em todos os demais lugares de livros e leituras.
No clássico “A queda do homem público”, o sociólogo estadunidense Richard Sennet nos alerta para o perigo dos espaços públicos se transformarem em espaços de passagem, voláteis, sem a possibilidade de experiências coletivas.
É nesse sentido que a biblioteca e os espaços de leitura podem se diferir ao se afirmarem como espaços de estar, de conviver, de gerar trocas, de privilegiar as ações coletivas. Tudo isso tem perfeita sinergia com o combate à pobreza às várias formas de desigualdades e talvez seja esse o centro, a própria essência de um evento como o Bibliofest.
Volto à construção da programação para deixar exemplificado, nesse breve texto, a força do trabalho coletivo, que reafirma o que disse acima sobre as bibliotecas e suas potentes experiências: foi o trabalho coletivo que propiciou diversificar ao máximo o conjunto de atrações que compõem o Bibliofest. O diálogo, as diferenças, as novas abordagens, a ação a partir do outro, com outro, foi o que nos abriu os horizontes desse mundo diverso.
Questões de gênero, raça e classe, conectadas sem maniqueísmo ou retórica esvaziada, com objetivos demarcados pelo respeito e não pela mera cessão de espaço; pela problematização das questões, não pela conciliação esvaziada.
Foram várias noites repletas de reuniões, debates e resoluções onde todos os envolvidos no evento, da produção à comunicação, da gestão à curadoria, ainda que envolvidos concomitantemente às suas atividades cotidianas, sentiram o cansaço inevitável, que foi compensado agora pelo excelente resultado da programação do evento.
Do trabalho coletivo é que brotaram nomes, abordagens e universos que buscaram dar conta, ainda que sem esgotar as possibilidades, da complexidade da nossa sociedade que, se por um lado é escravagista e excludente, por outro apresenta uma imensa pluralidade nas alternativas contra hegemônicas.
Assim, nós buscamos abrir fendas e veredas para que algumas questões possam vir à tona e sejam conhecidas e debatidas:
De escritores e escritoras Milton Hatoum, Kiusam Oliveira, João Carrascoza, Cidinha Silva, Maria Valéria Rezende, Mei Mei Bastos, Itamar Viera, Aline Valek, Cristiane Sobral, dos quadrinistas Marcelo De Salete, Rafael Costa e Jefferson Calça, do ilustrador Roger Melo, da rapper Vera Veronika, dos rpgistas Ricardo Mallen e Volnei Freitas, das mediadoras e teóricos Amanda Leal, do teórico em mediação Cayo Honorato, das questões de acessibilidade com Michele Galvão, dos estudos decoloniais com Glaucia Vaz, Andreia Sousa e Uelinton dos Santos, das políticas públicas, com a Cida Fernandez e Gilvanedja Mendes, da divulgadora de ciências Nerut Bensunsan, da represente da Federação dos Bibliotecários Adriana Ferrari, além das contação de histórias e oficinas diversas para adultos, jovens e crianças.
A ideia foi juntar literatura, leitura, a complexidade dos espaços de informação, as fabulações, as mediações que estão presentes, não para dar conta de todas as dores do mundo, mas para vislumbrar as suas possíveis curas.
Não poderia deixar de ressaltar que toda essa construção coletiva foi viabilizada e se tornou concreta em função da efetivação de uma política pública, de um edital público que materializou o Festival, com a toda a transparência e os compromissos políticos, estéticos e éticos inclusos.
De início, o evento seria ao vivo, presencial. Estávamos na fase pré pandemia e fomos surpreendidos, como o resto do mundo, pela duração e pelos dramas que a Covid19 impôs desde março de 2020 à população, que resultou no aprofundamento das desigualdades, da pobreza, do abismo social, agravados pela insensibilidade, pela política despótica e pelos erros (calculados ou não) que geraram dor e morte para centenas de milhares de famílias.
Pensar e colocar em prática um evento cultural dentro dessas circunstâncias dramáticas exigiu de nós redobrada atenção, uma criteriosa eleição de prioridades e um agudo senso de responsabilidade.
O principal sentimento que fica, às vésperas da estreia do evento, é de dever cumprido, gratidão e, claro, de expectativa. Agradeço imensamente às companheiras e os companheiros que estiveram ao lado nessa construção, além dos já citados: Fernando, Erika, Marmenha, Luciana, Ana, Ester, Jefferson, Marcos, Ornelo, Lorena e aos anônimos que apesar de invisíveis, sempre estão juntos.
Que o Bibliofest 2021, que se inicia no próximo dia 07 de maio, seja um palco de aprendizados e proporcione o vislumbre de um mundo mais justo.
Valeu!!
Para conhecer a programação e saber com participar, é só visitar o site do evento: https://abdf.org.br/bibliofest/