Já li tudo quanto foi crítica sobre Bacurau. Li também inúmeras postagens de colegas, ora elogiando o filme, ora desqualificando-o. Li, igualmente, inúmeros comentários nas postagens e nas matérias da imprensa sobre o filme. Escrevi no Facebook dois posts sobre ele. Esse texto tem a ver com algumas faíscas que espocaram na Roda de Conversa de que fiz parte nos jardins da reitoria, numa ação do LiteraCine, projeto de extensão do departamento de Literatura da UFC. Os presentes, assim como eu, queriam falar porque, segundo disseram, estavam entalados desde que viram o filme. Precisavam, portanto, desentalar. E desentalaram.

Alguns críticos têm analisado Bacurau como um baú de ambiguidades. Durval Muniz, por exemplo, vê isso como negativo, enquanto Marcelo Ikeda vê justamente aí a potência do roteiro. Li críticas de pessoas alinhadas com a esquerda e com a direita. vejam a briga de réplicas, tréplicas e diabo a quatro entre Demétrio Magnoli e Inácio Araújo, da Folha. Magnoli, sociólogo de direita, numa crítica de 15 de setembro diz que a única coisa que se salva no filme é a abertura, ou seja, a voz da Gal no espaço sideral com uma Terra ao longe. O resto “deve ser visto como um testemunho de nossa miséria intelectual – ou, mais precisamente, da extinção de qualquer traço de vida inteligente na esquerda brasileira”.

Além de acusar o filme de peça política, Magnoli diz que o filme transmite uma mensagem involuntária que ajuda a entender a eleição de Bolsonaro: o espelhamento da ultradireita com a esquerda: se aquela é “feroz, caricata, lunática”, esta é anacrônica, primitiva e mistificadora”. A leitura dele, portanto, relaciona o “objeto identificado” título da música que Gal canta, a esse espelhamento de comportamento da direita-esquerda.

No texto de réplica, do dia 16 de setembro, o crítico de cinema Inácio Araújo responde às provocações de Magnoli a partir do título: “Críticos dizem que ‘Bacurau’ é um filme de propaganda; e daí?”. Araújo vê essa propaganda como evidente e apresenta o filme como “sobre resistência e de resistência”. As preposições aqui apontam uma dupla leitura da presença da resistência que o filme traz: o assunto e o objeto. Se fazer um filme ou colocar em execução qualquer projeto de arte no Brasil sempre foi uma saga épica, desde que Dilma foi arrancada à força da cadeira da presidência da República, e bandidos de colarinho branco, ora aliados a milicianos cariocas, ora aliados aos velhacos parlamentares que há meio século vivem pulando do executivo ao legislativo para, em nome do povo, assaltar o povo, desde que o golpe se orquestrou usando como plataforma os bandidos de toga da Lava Jato de Curitiba, desde isso tudo, fazer arte nesse país tem sido perigoso, por isso, um ato de resistência. A palavra foi e está sendo tão utilizada, que parece se esvaziar. Mas não quero que ela seja um significante destituído de significado, ou de sentido rasurado e saturado, pela reiteração do uso.

Em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), o líder indígena e pensador Ailton Krenak lembra que, em 2018, antes das eleições, quando estávamos embasbacados com a aderência dos brasileiros a um programa político perigoso, perguntaram a ele como os índios fariam diante disso; e sua resposta foi: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa. A gente resistiu expandindo nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que nós somos todos iguais” (2019, p. 31). O que seria resistir, então, senão colocar em ação todo o nosso corpo e nossa voz, toda nossa experiência, empírica ou sistematizada numa cultura letrada a serviço da luta pelo direito de estar nesta terra sem ser espezinhados por quem se sente no direito de escravizar, de explorar o trabalho alheio em benefício próprio, de subjugar os outros pela cor e pelo gênero, de dizer o que é certo e, sobretudo, o que é errado e inaceitável? O que faremos, nós que nos sentimos brancos, diante não mais das ameaças, mas da execução de medidas apolíticas que não somente excluem o pensamento plural, como negam toda a e qualquer subjetividade elaborada há séculos como um sim à vida em meio a sinais mortificantes?

De que lado da luta está Bacurau?

Bacurau tem lado, e não é o dos que há séculos assaltaram esse território e se renovam na exploração, independentemente dos sistemas sociais e políticos vigentes por aqui ao longo da nossa história. Um país que tem brasa no nome, fruto de exploração dos povos que aqui viviam e da natureza circundante, que chama de “bons” desde os tempos coloniais apenas os abastados (apenas esses podiam assumir cargos políticos), um país que nasce como colônia de exploração, que fica independente, mas permanece gerido pela mesma família que embarcou em 1500, que depois é destituída por um golpe militar travestido de proclamação da República, que logo promove a maior guerra que a América Latina já teve, as centenas de mortes em Canudos; República Velha que dá lugar à Nova República também por um golpe militar seguido de ditadura, que também é chamada de revolução (a de 1930, de onde nasce o governo getulista); um país que se desintegra com outro golpe militar, com a deposição de Jânio Quadros e a instalação da ditadura militar, que dura duas décadas e, depois disso, sequer puniu os golpistas e se fez justiça pelos mortos e desaparecidos; um país cuja elite recentemente tramou contra a primeira presidente mulher do Brasil incitando o povo brasileiro a desejar morte a Dilma e ao PT, e, com o auxílio jurídico-midiático-parlamentar, colocou no poder um sujeito que reúne em si todos adjetivos que o definem como um fascista (misógino, racista, lgbtqfóbico, autoritário, grotesco, ultraconservador…); esse país é pós-doutorado tanto em violência física quanto simbólica.

Enfim, esse resumo da história do Brasil é precário, mas ilustra bem o que é sempre tivemos diante de nós, na nossa cara: fomos forjados como colônia, império e república na base do autoritarismo, do mandonismo, do racismo, do patrimonialismo, da corrupção, da desigualdade social, da intolerância e sob o signo da violência. Como indica, o mais recente livro da professora Lilia Schwarcz, em Sobre o autoritarismo brasileiro (2019), citando um verso de Drummond que diz que “Toda história é remorso”, Lilia aponta que os fantasmas do presente estiveram bem vivos em cada momento da nossa história, e sugere que “A função da história é, assim, ‘deixar um lembrete’ sobre aquilo que se costuma fazer questão de esquecer” (2019, p. 229). e o que não devemos esquecer: de que existe uma fragilidade na estrutura de nossas instituições. Mas voltemos a Bacurau, que é bicho da noite e está piando.

Alguns críticos têm dito que o filme é um exercício da barbárie, por isso perigoso, porque, diante de um país em crise de valores sociais e políticos, quando nossos representantes fazem questão de disseminar atitudes que estimulam o ódio ao diferente a ponto de querer exterminá-lo, diante de um governo que, quando deveria manter em segurança o meio ambiente, as parcelas da população desfavorecidas e marginalizadas (como os indígenas, o campesinato, a camada miserável da população urbana, os negros periféricos, mulheres e LGBTQs) incita raivosamente a população a ver essa gente como aberração e sujeitos desviantes que precisam ser molestados socialmente.

E os feminicídios aumentaram, e aumentaram os crimes contra gays, lésbicas, travestis e transexuais, e os produtos artísticos e culturais sobre essas temáticas tiveram sua verba cassada e os editais sustados, e as queimadas desde a Amazônia Legal se intensificaram neste ano, com os atos criminosos contra a natureza… Enfim, miséria pouca é bobagem. Miséria humana. E então o problema de Bacurau é que ele traz uma violência gratuita. Como é que é? Eduardo Escorel, que escreve para a Revista Piauí, diz já no subtitulo do texto “Celebração da barbárie” que o “filme exalta de modo inquietante parceria entre povo desassistido e bandidos”.

O autor se utiliza justamente das letras das canções que compõem a trilha sonora para levantar um problema: “Após ter começado com Não Identificado, a ‘canção singela, brasileira’ de Caetano Veloso, Bacurau termina com Réquiem para Matraga, na voz de seu autor, Geraldo Vandré: ‘Vim aqui só pra dizer/Ninguém há de me calar/Se alguém tem que morrer/Que seja pra melhorar […].’ Como devemos entender esses versos entoados de modo a parecer palavras de ordem? Seriam uma forma de Mendonça Filho e Dornelles justificarem seus personagens por fazer justiça com as próprias mãos? Além de desafiar qualquer tentativa de emudecer quem canta (ou filma), a canção e o filme pretendem defender o ato de matar desde ‘que seja para melhorar?’”. E fecha o texto lembrando a relação da família do presidente com a milícia e que “a complacência face a essa promiscuidade é imprudente e perigosa, podendo estimular vários tipos de ações violentas”. Escorel, portanto, entende Bacurau como uma perigosa cartilha onde podem se alfabetizar aqueles que querem se vingar do estado atual da conjuntura política brasileira.

Filme perigoso. “Viver é perigoso”, já dizia Riobaldo

Seria Bacurau uma cartilha da violência? Após assistir a pedagogia da barbárie, os brasileiros saem da sala de cinema encorajados a fazer justiça com as próprias mãos? E já querem encontrar alguma Lunga para os liderar na carnificina que devem promover. É isso mesmo? Do mesmo modo, saímos querendo tomar o poderoso psicotrópico que senhor das ervas faz na comunidade? Um alucinógeno que, quando deveria nos colocar em estado de suspensão, nos impulsiona para a luta. Traz um psicotrópico aí e da aqui para esses homens e mulheres que acabaram de sair do cinema com vontade de entrar na resistência. É assim que funciona a coisa? Parece que Lunga não é o líder ou o protagonista que nem a direita nem certa parte da esquerda deseja. Um cangaceiro? Pra que reviver isso? Um cangaceiro distópico que nem é homem nem é mulher e ainda tem um figurino com o pé na moda brega dos anos 60?

Apenas para ilustrar esse descontentamento com o Lunga, cito trecho da crítica do professor de história Durval Muniz: “Alguém gostaria de viver sob o governo de Lunga e seus asseclas, alguém que se deleita em cortar cabeças e enterrar um homem vivo, só porque são inimigos de classe ou porque representam o imperialismo? Já imaginaram viver sob a batuta do homem do ‘teco’ na cabeça? Eu preferiria ser governado pelo professor negro e amoroso com as crianças, pela médica alcoólatra e barraqueira. Eu prefiro a transgressão da mulher que transa de janela aberta e o riso sarcástico do cantador de viola que desmascara o impostor, do que os litros de sangue que lava o peito viril e macho do galã brega, com sua cabeleira também anacronicamente com os pés nos anos sessenta”.

Cada um vê e lê as coisas a seu modo, não é? Mas Lunga incomoda também os conservadores da direita e da ultradireita, que não é o caso do Durval. Certamente, se essa gente fosse ver o filme, e permanecesse até o fim, veriam o Lunga como uma aberração de líder. Ele não serve para liderança simplesmente porque não é o homem viril dos filmes hollywoodianos, tampouco é o matador bronco dos filmes nacionais. É uma pessoa trans o bandido mais procurado, com prêmio oferecido pela cabeça. É uma pessoa que saiu do povoado, deixou a escola (escrevia muito bem, segundo o professor) e que enveredou no caminho do crime.

É um líder que não traja um figurino que meta medo nos inimigos, mas veste-se como quem vai para um desfile LGBTQ, com brilho e acessórios necessários para a luta de exposição de sua identidade de gênero. Não, este líder não serve para a reencarnação de Lampião. Mas Lampião, lembrem-se, também era vaidoso, diz que bordava, que desenhava seu figurino, que adorava perfume francês, que costurava as roupas do cangaço e que, na intimidade, tirava a roupa de sua virilidade de macho alfa. Não sei, são lendas.

Mas Lunga incomoda até dizer chega, com sua natureza desviante, com sua identidade andrógina, que desafia até o povo de Bacurau, que não sabe se usa o artigo definido masculino ou feminino para se referir a Lunga. Lunga-Diadorim-Reinaldo-MariaDeodorina. Nesse ponto, o herói desviante tem muito de Grande Sertão: Veredas, que eu convoco também aqui para me ajudar a pensar no espaço geográfico de Bacurau. “Sertão é onde o pensamento se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso”, diz Riobaldo, na saga de Guimarães Rosa.

Logo no início do filme, quando vemos a Terra do espaço, é a banda do nordeste do Brasil que vemos entre as nuvens; e à medida que nos aproximamos, somos mergulhados no mar grande do Brasil profundo que não tem mar, mas um dia foi, como dizia a prédica de Antônio Conselheiro na Canudos do final do século XIX: “O sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”. Alguém por acaso notou a mandíbula de tubarão fossilizado no solo dos arredores de Bacurau? Aliás, ver o sertão em época verde, e não como a estética acinzentada, preferida pelo Cinema Novo, é mais uma ambiguidade interessante do filme.

Somos jogados no mar seco onde repousa Bacurau, na sua paz de interior, isolada do mundo, mas hiperconectada. Na tela dos smartphones dos bacurauenses está o mundo de dentro e o mundo de fora. A paz que supostamente achamos encontrar em Bacurau, um paraíso perdido, no sertão, é aparente. A placa que avisa a distância para o vilarejo já faz uma advertência aos desavisados, que somos nós, viajantes: “Se for, vá na paz”.

Ora, a construção frasal imperativa não deve ser compreendida como umas cordiais boas-vindas. É advertência. Funciona mais ou menos assim: “Não invente de trazer a guerra para cá”. E sabemos disso alguns minutos depois, quando chega o prefeito, candidato a reeleição. A pequena população, que estava praticamente toda na rua, se organiza em instantes, após a mensagem de whatsapp da travesti que vive na entrada do povoado e é a vigilante, e some numa ação política de literalmente dar as costas à falácia politiqueira do tosco prefeito. E, mais tarde, quando o banho de sangue e a selvageria dos estrangeiros que matam como jovens eufóricos diante da tela de computadores, num desses games de violência, nos quais o jogador ganha mais pontos quantos mais mortes promove, a população de Bacurau, ainda que sob o efeito do psicotrópico, estende um varal com as roupas ensaguentadas dos mortos, retira as armas do porão e do museu, e mostra que sempre esteve preparada para a luta.

A luta é contínua ali: pela água, por comida, por assistência política, e para se manter vivos. É um revide. Não é gratuita coisa nenhuma. E é histórica, não é atemporal e ocasional. Só sabemos disso quando um dos estrangeiros assassinos entra no museu e, de relance, vemos fotos do povoado quase cem anos atrás dando conta de que ali houve resistência às volantes do governo que saíam no encalço dos cangaceiros. Ali é terra de cangaceiros? Não fica claro, nem precisa ficar, mas as armas usadas ha tempos, que estavam expostas no museu, de que tanto os moradores se orgulham, deixam de ser memória e passam outra vez a fazer história nas mãos da geração que não dispõe de outras armas para se defender.

Os moradores de Bacurau representam uma população de insurgentes. Por isso, Ivana Bentes, no texto “Bacurau e a síntese do Brasil brutal”, publicada na Cult em 29 de agosto, aponta que o filme mostra “os insurgentes em uma democracia em agonia” e diz que os bacurauenses são “novos heróis de uma Canudos revisitada”. Quem são eles? Bentes responde: “O Brasil que emergiu no ciclo democrático dos últimos 13 anos, as minorias que se tornaram sujeitos do discurso, os ex-quecidos do Brasil rural, ribeirinho, periférico, as figuras fronteiriças, como a extraordinária cangaceira trans, encarnada por Silvero Pereira”.

Lá nOs Sertões, Euclides da Cunha, usa de ambiguidade para descrever o sertanejo. Ele funde dois personagens para descrever o sertanejo: Hércules-Quasímodo. Um herói forjado de fortaleza e desempeno, é belo e feio. Euclides começa dizendo uma frase que já virou bordão: “O sertanejo é, antes de tudo um forte”. E esses sertanejos Hércules-Quasímodos irrompem em Bacurau, destemidos, solidários na iminência da morte, mas também na celebração da vida. Não à toa, o filme começa com o caminhão-pipa estraçalhando caixões na estrada, quase como uma metáfora que avisa: “aqui, a morte nos ronda o tempo todo, mas nós respondemos é com vida”.

É vida que pulsa nos corpos naturalmente nus que aparecem tomando banho (homem e mulheres), fazendo amor (homens e mulheres), se beijando (mulheres-mulheres), bebendo e se embriagando, celebrando a vida da matriarca sem choro e com canto, cuidando de horta medicinal… O erotismo do povo de Bacurau não tem nada a ver com o casal de assassinos gringos que, após abater uma criança e um casal, está tão excitado que decide transar ali no mato para comemorar a barbárie.

De que nudez estamos falando? Qual destas cenas de nudez é obscena mesmo? E será mesmo que a nudez explícita reforça a ideia do Brasil como destino turístico sexual, como aponta Durval Muniz? Um casal de velhos, no meio do mato, vive nu. E qual o apelo erótico dessa cena? Me parece que nenhum. Mas, realmente, não podemos ser moralistas e decretar que os diretores deviam vestir seus personagens porque isso pode ser um atentado ao pudor. “Precisamos proteger a família e nossas crianças”, diria a direita, enquanto parte da esquerda conservadora diria que a nudez nas artes é desnecessária e só coopera para a repressão sexual. A nudez incomoda a esquerda e a direita.

Brasil é Bacurau? Qual, o filme ou o povoado?

Mas continuemos falando de… violência. Disso o brasileiro entende muito bem, forjada sua história à custa de muito sangue. No início do filme, a frase “daqui a alguns anos” é um recurso para separar o tempo de quem está ali na sala de cinema do tempo em que se desenrola a trama. Do lado de fora da tela é o tempo presente, mas é o passado em relação ao lado de dentro da tela, que é o futuro em relação ao lado de fora. Os diretores entregam uma distopia, ou melhor, uma antiutopia.

E o Brasil do futuro, onde existe Bacurau, é um país supostamente dividido em dois. O Brasil do Sul aparece na tela do carro-pipa e numa TV plana que aparece ligada numa das cenas e cuja imagem mostra o vale do Anhangabaú com uma informação do canal de TV: “As execuções públicas serão retomadas às 14:00”. O Brasil do futuro é um estado totalitário que aderiu à pena de morte e faz execuções públicas e televisionadas como o espetáculo deprimente da miséria humana. Eis a violência que os diretores nos entregam.

O pacto do prefeito do município ao qual pertence Bacurau com os estrangeiros, ainda que ilegal, é uma ação criminosa, mas perfeitamente pertinente numa conjuntura como aquela. O Brasil totalitário daquele tempo, não tão distante, será um país de entreguistas. O casal de brasileiros do Brasil do Sul, que se acha branco, e colabora com a matança, mostra claramente como pensam os entreguistas. Alienados de sua condição racial e social, eles não medem esforços na tentativa de se tornarem iguais aos assassinos estrangeiros que tanto admiram.

Não vi Bacurau de forma maniqueísta. Ele é ambíguo, montado em clichês, feito de colagens que apontam para várias camadas de significação (pela trilha sonora e pelo espaço cênico, especificamente). Mas não encontrei ali o maniqueísmo do bem e do mau, do maldito e do bendito, do mocinho e do bandido. É complexo demais para ler assim o roteiro. A mistura de gênero aí, o transgênero, como brinca Ivana Bentes, apontando tanto a mistura de gêneros fílmicos que aparecem no filme (ficção científica, filme de horror, western…) quanto as identidades sexuais que se movem no povoado, desconstrói a leitura acostumada tanto do cinema quanto a sociológica sobre os heróis que temos visto.

Essas ambiguidades são apontadas de maneira muito interessante pelo professor da Escola de Arte e Cinema da UFC, Marcelo Ikeda, num texto publicado em sua página pessoal no Facebook. Uma análise que vale a pena ser lida e digerida, porque é uma aula de interpretação possível para Bacurau. Ao apresentar as ambiguidades do filme Ikeda diz que “Bacurau desliza sobre essas camadas de intenções, utilizando o marketing e o mercado como forma de ampliar seu alcance. Entre o cinema-de-gênero e o cinema político, entre o filme-mantra da esquerda-festiva e a capa da Cahiers du Cinema, Bacurau – o filme – vai promovendo um percurso suave sobre essas possibilidades, flanando como um verdadeiro filme-coral”.

Já Roberto Correia dos Santos (Roberto Cossan), professor do Instituto de Artes da UERJ e poeta, em uma postagem do Facebook, elabora uma série de itens de leitura sobre o filme, poeticantropofagicamente fala de uma “insurreição marrom” e dá o ultimato de duas vitórias, que vão aqui em dois dos 12 itens apontados por ele: item 5 – “Ficamos extasiados diante do alto saber com que os marrons diretores do Fim do Mundo manejam com arte plena os recursos do Cinema-Mestre feito pelo brancos do Coração do Mundo, e tudo com altivez e distância das cabecinhas estadunidenses, em enorme parte imbecis quanto ao narrar e ao imaginar; item 12 – !”Morenos, oh morenos: ganhamos a batalha: lá, em Bacurau. E na arte do cinema, por enquanto”.

Para concluir, ouvi muita gente dizendo que Bacurau é o Brasil. Eu mesmo disse, numa primeira avaliação, logo que saí da sala de cinema, quando vi o filme pela primeira vez. Disse que Bacurau é o Brasil. Mas qual Bacurau seria o Brasil: o Bacurau-filme ou Bacurau-povoado? Se Bacurau-filme é o Brasil do presente disfarçado de futuro distópico, o Bacurau-Povoado não é o Brasil. O Brasil do presente e o do passado não consegue viver a diversidade.

No povoado de Bucurau, putas e putos têm o seu lugar, não separado, são a comunidade, participam das decisões, as travestis e transgêneros são respeitados como qualquer outro morador, o professor e líder comunitário é negro, filho de uma matriarca negra. Bacurau tem tudo para ser um quilombo. E, portanto, não representa o Brasil misógino, machista, lgbtfóbico, conservador que somos. E que importa se os fora da lei brasileiros também vivam em paz com a médica, com o professor, com a responsável pelo museu, com as crianças, com o curandeiro? Mais uma prova de quem não é pela lógica do maniqueísmo que o filme deve ser lido.

Além disso, os moradores de Bacurau são organizados, efetivamente formam uma comunidade cujo corpo é uno sendo coletivo. eles se respeitam e se organizam a partir de uma autogestão, onde cada um tem muito a contribuir. É assim, por exemplo, quando o empregado do prefeito decide levar uma prostituta do povoado, após o episódio do desprezo ao prefeito; é assim quando à noite, todos se reúnem para a discutir o que fazer com as doações o prefeito. É assim também quando todos decidem revidar. Eles são uma comunidade. O Brasil está longe de ser uma Bacurau. Bacurau está no Brasil, que não merece Bacurau.

O Brasil de “daqui a alguns anos”, onde está localizado temporalmente Bacurau, é um Brasil que não deu certo, um país cujas execuções em praça pública são televisionadas, já disse. É um Brasil de fim de mundo, o céu já desabou sobre nossas cabeças. Mas existem as ilhas de resistência, que explicam a micropolítica de Bacurau.

Ailton Krenak diz que nosso tempo é intolerante com quem ainda é capaz de experienciar o prazer de estar vivo por meio da dança, do canto. É uma sociedade “especialista em criar ausências” (KRENAK, 2019, p.26). Uma forma de adiarmos o fim do mundo, ensina Krenak, é “exatamente sempre poder contar mais uma história” (2019, p. 27). É uma forma de suspender o céu. Se a arte tem algo a ensinar, talvez seja isso.

Referências

ARAÚJO, Inácio. Críticos dizem que ‘Bacurau’ é um filme de propaganda; e daí? Folha, 16 de setembro de 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/…/criticos-dizem-que-bacurau-…

BENTES, Ivana. Bacurau e síntese do Brasil brutal. Revista Cult, 29 de agosto de 2019.
https://revistacult.uol.com.br/…/bacurau-kleber-mendonca-f…/

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição crítica e organização de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ubu; Edições Sesc, 2018.

ESCOREL, Eduardo. Bacurau – celebração da barbárie. Revista Piauí, 28 de agosto de 2019.
https://piaui.folha.uol.com.br/bacurau-celebracao-da-barba…/

IKEDA, Marcelo. As ambiguidades de Bacurau. Postagem do Facebook, 17 de setembro.
https://www.facebook.com/marceloikedaa/posts/2491136130933183

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

MAGNOLI, Demétrio. ‘Bacurau’ é testemunho da extinção de vida inteligente na esquerda brasileira. Folha, 15 de setembro de 2019.
https://www1.folha.uol.com.br/…/bacurau-e-testemunho-da-ext…

MUNIZ, Durval. Bacurau: será mesmo resistência? Agência saiba mais, 15 de setembro de 2019.
https://www.saibamais.jor.br/bacurau-sera-mesmo-resistencia/

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympico Editora, 1982.

SANTOS, Roberto Correa dos (Roberto Cossan). Postagem publicada em 2 de setembro.
https://www.facebook.com/robertocorreadossantosangotti/posts/2299817253569301

SCWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

 

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