Não penso como La Bruyère[1] que uma biblioteca seja um curtume. Convém que os bons livros sejam belos, e é justo que os raros sejam os mais procurados. Um autor sempre espera que seu livro seja bem impresso, em papel fino, e ele mesmo colocou em boas mãos os exemplares escolhidos a dedo e, portanto, raros. Vocês acham que tenha sido indiferente, mesmo para Corneille,[2] mesmo para Bossuet,[3] mesmo para Racine,[4] que suas obras tivessem a garantia de sobrevivência, também em virtude de sua qualidade material? Os exemplares oferecidos por eles ou que trazem uma marca de sua propriedade são, naturalmente, os mais preciosos: as estampas[5] são anteriores à carta ou às primeiras impressões. Pois bem, não são estes que devemos ter, precisamente porque nos trazem o perfume da mão que os tocou? Aqueles que pertenceram a grandes personagens, ilustres bibliófilos, senhoras bibliófilas, também guarda algo deste sabor delicioso:
Marguerite, Marie, ou talvez Diane,
Com seus dedos amorosos uma vez o acariciaram,
E esse pergaminho desbotado, dourado por Clovis Ève[6]
Evoca, não sei por qual encanto passado,
A alma de seu perfume e a sombra de seu sonho.[7]
Uma biblioteca tem que ser um luxo. Para exercer sua função de juiz, o bibliófilo, como todos os juízes do mundo, deve observar a forma, pois a beleza do exemplar revela uma tradição de escolha, remontando ou ao próprio autor, ou a seu tempo, e descendo dali, através dos tempos, de mão em mão, graças aos homens que amaram este livro e o preservaram cuidadosamente.
Se Francisco I[8] possuía um exemplar dos Sonetos, de Petrarca,[9] se o tinha encadernado, sem dúvida na Itália, já que a flor-de-lis estampada na capa é a flor-de-lis de Florença, se, neste exemplar, encontrarmos seis versos do Rei celebrando Laura e Petrarca,[10] o amante e a amada, se este livro, levado de geração em geração pelo gosto e atenção dos bibliófilos, chegou até nós, não é verdade que a glória de Petrarca é aureolada por esta ilustre possessão e se meus olhos se demoram nos Sonetos onde o olhar e os pensamentos do Rei Francisco pararam, a emoção que ele sentiu me transporta e me faz, por um momento, o contemporâneo do Renascimento?
Todos os nossos soberanos, a maioria dos nossos grandes estadistas adoravam os belos livros: é um gosto que sempre existiu no temperamento francês, apaixonado pelo requintado. Na Idade Média, as coleções de manuscritos de Carlos V, o Sábio,[11] do Duque de Berry,[12] do Duque da Borgonha[13] e de outros membros da família real reúnem obras que podem ser computadas entre as mais belas feitas por mãos humanas. Os livros escolhidos para Francisco I,[14] Henrique II,[15] Catarina de Médici,[16] Carlos IX,[17] Henrique III,[18] Marguerite de Valois,[19] são a flor da bibliografia de todos os tempos. Seria necessário enumerar todos os nossos príncipes, exceto, talvez com alguma reserva para Henrique IV,[20] que vivia a cavalo reino afora, sem tempo para despachos em gabinetes. De Luís XIII[21] a Luís XVI,[22] a linha é ininterrupta. E junto dos nomes dos príncipes ponham-se os dos nossos grandes ministros: Richelieu,[23] Mazarin,[24] Le Tellier,[25] Colbert,[26] Torcy,[27]
[1] La Bruyère (1645-1696) se tornou célebre em virtude de sua única obra, Les Caractères ou les Mœurs de ce siècle (1688), onde estimula a leitura em voz alta, conferindo a essa atividade o status de julgamento moral graças ao efeito retórico obtido pela leitura oral sobre os ouvintes. Nesta obra a figura do colecionador de livros é explorada numa série de personagens afligidos por uma curiosidade desprovida de discernimento. Tendo como maior infração viver de livros sem lê-los, ele sentencia: “Seu curtume, que ele chama de biblioteca” (LA BRUYÈRE, Jean de. Les caracteres, ou, Les moeurs de ce siècle. Paris: A. Colin, 189. p. 317, tradução nossa).
[2] O francês Pierre Corneille, mais conhecido por Corneille (1606-1684) foi um dramaturgo de tragédias, tido como um dos três maiores produtores de dramas na França, durante o século XVII, ao lado de Molière e Racine. Por vezes apontado como o fundador da tragédia francesa, escreveu peças durante mais de 40 anos.
[3] Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704) foi um bispo, teólogo, orador e escritor francês, um dos principais teóricos do absolutismo por direito divino, defendendo o argumento que o governo era divino e que os reis recebiam seu poder de Deus. Bossuet proferiu sermões e orações fúnebres que ainda permanecem famosos. É autor de uma abundante obra escrita que trata da espiritualidade, da instrução religiosa, da controvérsia antiprotestante ou mesmo de várias controvérsias diversas, incluindo aquela que o opõe a Fénelon sobre o quietismo. Ele foi eleito para a Academia Francesa em 1671. Foi autor de La Politique tirée de l’Écriture sainte, publicada postumamente em 1709, na qual defende a teoria do Direito divino dos reis justificando que Deus delegava o poder político aos monarcas, conferindo-lhes autoridade ilimitada e incontestável. O caso mais exemplar de governante que adotou as ideias de Bossuet foi Luís XIV, da França, cognominado Rei Sol.
[4] Jean Baptiste Racine (1639-1699) é considerado, juntamente com Pierre Corneille, como um dos maiores dramaturgos clássicos da França. Sua primeira peça, Amasie, composta 1660, não foi aceita no Théâtre du Marais. De espírito ousado e frequentemente mordaz, Racine teve uma ascensão rápida e uma carreira brilhante, escrevendo onze tragédias e uma comédia.
[5] Imagem impressa após ter sido gravada em cobre ou madeira.
[6] Encadernador francês que atuou entre fevereiro de 1583 e maio de 1633. Era filho dos encadernadores Nicolas Ève e Noëlle Heuqueville. Em 1583, tornou-se o quinto titular do cargo de “encadernador do rei” após seu pai. Especializou-se na produção de encadernações decoradas com pequenos ferros chamados “à la fanfare”. Além de Henrique III, trabalhou para o Henrique IV e Luís XIII. Clovis Eve está na origem das encadernações com emblemas macabros (esqueletos, caixões, caveiras) encomendadas por Henrique III.
[7] Trecho do poema Velin doré, de José Maria de Heredia (HEREDIA, 1893, p. 100, tradução nossa).
[8] O rei Francisco I, grande colecionador, teve o cuidado de enriquecer a biblioteca real, criando uma instituição revolucionária, o depósito legal. Foi ele quem, em 1537, promulgou a “Portaria de Montpellier” ordenando que todos os livros fossem depositados em sua biblioteca de Blois, sob a direção do padre e poeta Melin de Saint-Gelais, ou em universidades e outros postos instalados nas cidades do reino. Ao mesmo tempo que o monarca disseminava as obras consideradas “dignas de ser vistas”, impedia que tantas outras, particularmente as protestantes, alcançassem os leitores (FRANCISCO I, monarca. [Ordonnance de Montpellier]. In: PICOT, Georges. Le dépot légal et nos collections nationales. Paris: Alphonse Picard, 1883).
[9] O italiano Francesco Petrarca (1304-1374) detém uma vasta obra bibliográfica, sobretudo de poemas que o consagraram como renovador da lírica latina. Destacam-se, entre suas criações, os Trionfi (Triunfos) e, mais importante, na perspectiva da posteridade, as Rime (Rimas, também conhecidas como Canzoniere), que o imortalizariam não só como o mestre da canção rimada, mas sobretudo como o poeta que levou à sua máxima potencialidade plástica e expressiva a forma clássica do soneto, criada no século XIII por autores do sul da Itália. Em seus 70 anos de vida escreveu mais de 300 sonetos.
[10] O nome de Petrarca está associado ao de Laura, a mulher amada que ele canta em Rerum vulgarium fragmenta (Fragmentos em língua popular), mais conhecidos pelo nome de Il Canzoniere. Consta que em 1327, em uma sexta-feira Santa, a visão de uma mulher chamada Laura na Igreja de Santa Clara de Avinhão despertou em Petrarca, já clérigo, uma paixão duradoura, celebrada nas Rime sparse (Rimas Esparsas). Mais tarde, poetas renascentistas que copiaram o estilo de Petrarca deram o nome a essa coleção de 366 poemas de Il Canzoniere (O Cancioneiro).
[11] Carlos V (1338-1380), também conhecido como o Sábio, foi o Rei da França de 1364 até sua morte. Foi um patrono das artes, criando no seu castelo, o Louvre, uma biblioteca. Disposta em três salas sobrepostas, a biblioteca – germe da Biblioteca Nacional da França – foi confiada ao dedicado Gilles Mallet, que ocupou o cargo por 41 anos até sua morte. Em 1373, 910 volumes, incluindo muitas obras traduzidas, compunham sua biblioteca.
[12] João de Valois, o Magnífico (1340-1416), o duque de Berry e de Auvérnia, foi um grande mecenas. Contratou André Beauneveu e Jacquemart de Hesdin, os irmãos Limbourg, para elaborar belíssimas iluminuras. Consta que sua biblioteca possuía os mais belos manuscritos do século XIV.
[13] Filipe de Valois (1342- 1404), cognominado Filipe, o Ousado, foi Duque da Borgonha e uma das personagens mais importantes do século XIV. Além de um político astuto, fundador de uma dinastia que reinou por mais de um século, o Duque da Borgonha foi um bibliófilo apaixonado, mandando construir uma biblioteca que, embora modesta em números de itens – no ano de sua morte possuía 70 volumes –, abrigava cópias de manuscritos finos, principalmente traduções do grego ou do latim, e obras encomendadas, como um luxuoso livro de horas (atualmente conhecido por Grandes Horas de Filipe, o Ousado) e o Livre des faits et bonnes moeurs du sage Roy Charles V (Livro de fatos e bons costumes do sábio Rei Charles V), escrito por Christine de Pizan. Ele foi o primeiro protetor dos irmãos Limbourg, a quem encomendou uma Bíblia moralizada – obra que traz versos bíblicos em latim, com comentários que fornecem lições morais e consistentemente associada com miniaturas que ilustram estes trechos – que permaneceu inacabada.
[14] Ver nota 28.
[15] Henrique II (1519-1559) foi o Rei da França de março de 1547 até sua morte. Semelhante ao pai, o rei Francisco I, embora de forma mais contida, Henrique II investe no desenvolvimento artístico e intelectual, embora de forma menos extravagante. A literatura francesa se enriquece com a obra de grandes escritores, como Michel de Montaigne e Étienne de La Boétie, e um novo movimento poético, a Pléiade, cujo objetivo político era participar da unificação da França através da língua francesa.
[16] Catarina de Médici (1519-1589), foi uma nobre italiana que se tornou rainha consorte da França de 1547 até 1559, como a esposa do rei Henrique II. Durante sua regência, Catarina mandou edificar em Paris o Palácio das Tulherias, ordenou a ampliação do Palácio do Louvre e contribuiu para o engrandecimento da cidade. Também ampliou o acervo da biblioteca de Paris com manuscritos provenientes da Grécia e da Itália.
[17] Carlos IX (1550-1574), rei da França de 1560 a 1574, foi educado e cultivou as letras, tendo recebido lições de Jacques Amyot, clérigo e tradutor, que deu a conhecer à França a obra de Plutarco. Apaixonado pela caça, escreveu o livro La Chasse Royale, que foi publicado muito depois de sua morte, em 1625. É uma fonte valiosa para os interessados na história dos cães e da caça.
[18] Henrique III (1551-1589) foi o Rei da Polônia e Grão-Duque da Lituânia, e também Rei da França de 1574 até seu assassinato. Ele era o favorito de sua mãe, Catarina de Médici, que o chamava de “olhos preciosos”, tinha pouco interesse nos passatempos tradicionais de caça e exercício físico dos Valois, preferindo satisfazer seu gosto pelas artes e pela leitura.
[19] Marguerite de Valois (1553-1615), mais conhecida como Rainha Margot, foi uma princesa francesa da dinastia Valois, que se tornou rainha consorte de Navarra e depois da França. Ficou conhecida como uma mulher de letras e uma mentora das artes, desempenhando um papel considerável na vida cultural da corte, especialmente após seu retorno do exílio em 1605. Ela foi um vetor do Neoplatonismo, que pregava a supremacia do amor platônico sobre o amor físico. Enquanto esteve presa, escreveu suas Memórias, que foi publicada postumamente.
[20] Henrique IV (1553-1610) – rei de Navarra como Henrique III de 1572 até sua morte, e também Rei da França a partir de 1589 –, por sua diplomacia, realismo e clarividência, soube enfrentar com maestria a economia destroçada e o grande fanatismo religioso perpetrado tanto por católicos quanto por protestantes, retomando a paz e o crescimento econômico, ficando conhecido como “o Bom Rei Henrique”. Seu pragmatismo em resolver os graves problemas de seu reinado o fez ser representado sob o lombo do cavalo, talvez alheio ao universo dos livros. Na Pont Neuf (Ponte Nova), a mais antiga das pontes que cruzam o rio Sena, em Paris, fica a estátua equestre do rei Henrique IV, erigida sob as ordens de Maria de Médici, sua viúva e regente da França.
[21] Luís XIII (1601-1643), também chamado de Luís, o Justo, foi rei da França e Navarra de 1610 até sua morte. Embora inicialmente pouco interessado em latim e em letras – resultado, quem sabe, da educação superficial que recebeu por parte de seu preceptor, Gilles de Souvré – o rei era apaixonado por música, pintura e desenho, tendo, inclusive, criado coreografias para os bailes da corte. Seu reinado se notabilizou pelo desenvolvimento nas artes, nomeando, inclusive, o cardeal François de La Rochefoucauld como encarregado da Abadia Santa Genoveva, o qual enriqueceu o acervo da biblioteca com 600 volumes de sua própria coleção.
[22] Exemplo de intelectualismo, Luís XVI (1754- 1793) – rei da França e Navarra de 1774 até ser deposto em 1792 durante a Revolução Francesa, e executado no ano seguinte –, fluente em inglês e italiano, e admirado pelo conhecimento em latim, astronomia, história e geografia, encomendou ao arquiteto Ange-Jacques Gabriel, logo que assumiu o trono, a construção de uma biblioteca em Versailles, reunindo uma das mais impressionantes bibliotecas privadas da época, com mais de oito mil livros.
[23] Ver nota 20.
[24] Nascido Giulio Raimondo Mazzarino (1602-1661), o cardeal Mazarino foi um estadista italiano radicado na França que serviu como primeiro-ministro da França de 1642 até à data da sua morte. Não chegou a se ordenar padre, mas se tornou núncio apostólico em Paris e em breve alcançou o cardinalato, sendo apoiado pelo poderoso Armand Jean du Plessis, o cardeal Richelieu, primeiro-ministro do fraco e indolente Luís XIII. Esteta refinado, tornou-se dono de ricas coleções de arte no seu Palácio Mazarin e no castelo de Vincennes, onde faleceu. Deixou uma opulenta biblioteca, a chamada Biblioteca Mazarina, que se tornou, por sua ordem, a primeira biblioteca pública da França. Essa Biblioteca foi mais tarde incorporada ao Institut de France, responsável em administrar museus, bibliotecas, castelos e palácios.
[25] Charles-Maurice Le Tellier (1642-1710) arcebispo de Reims e bibliófilo, legou sua biblioteca – cerca de 50 mil volumes – à rica Abadia Sainte-Geneviève, em Paris, que detinha, à época, a terceira mais importante biblioteca da Europa. Atualmente esta coleção se encontra na Biblioteca Sainte-Geneviève, uma biblioteca pública e interuniversitária da capital francesa.
[26] Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), ministro de Luís XIV, protegeu as ciências, as letras e as artes. Fundou a Academia das Inscrições e Belas Letras, e apoiou a pesquisa com a criação da Academia das Ciências (1666) e o Observatório de Paris (1667). Semelhante a seu antigo protetor, o cardeal Mazarin, Colbert montou uma das melhores bibliotecas da França e dedicou muito tempo a enriquecê-la. A partir de 1663, três anos após ter sido criada, seu acervo de impressos e manuscritos foi significativamente ampliado, graças a atuação de dois bibliotecários: Pierre de Carcavy e Étienne Baluze. Ambos auxiliaram Colbert a montar uma rede de correspondentes nas províncias e em toda a Europa, responsáveis pela descoberta dos livros raros e preciosos que aportaram em grande número, sejam a título de aquisição ou para serem copiados. Assim, a biblioteca passa a ser a terceira mais importante da Europa em número de exemplares. Com a morte de Colbert, o inventário de livros da biblioteca contava mais de vinte mil volumes impressos e mais de oito mil manuscritos antigos (BALUZE, [1700?]).
[27] Jean-Baptiste Colbert de Torcy (1665-1746), marquês de Torcy, foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos mais notáveis diplomatas do reinado de Luís XIV. Foi dele a ideia de instalar no Louvre, em 1710, a biblioteca-arquivo, associando-a, dois anos mais tarde, a Academia Política, a escola diplomática francesa. Objetivando melhorar a formação dos jovens diplomatas, determinou a aquisição de livros de certos autores, tais como Grotius, Puffendorf, de Wicquefort, Machiavelli, Lipse, abarcando as áreas de direito público, história dos tratados, cerimoniais e línguas estrangeiras (BASCHET, 1875).