A casa da minha infância foi muito musical. Meu pai era funcionário da Odeon Discos, fábrica em São Bernardo. Acredito que a labuta do Geraldo contaminou a família com a alquimia do vinil. Disco, gravador, rádio. Canais sempre ligados. Ninguém parou mais de cantar e ouvir música.
Os discos chegavam, a casa cantava junto. Alguns mais efusivos, outros mais quietos, as canções tingiam alguns cantos cinzas da vida de família. Eu lá absorvendo tudo, nos sete, oito anos de vida.
Nunca vou esquecer-me de um ano e de um disco, 1974, o compacto duplo “Cristina” da RCA. Sim, Cristina Buarque de Holanda, a “minha irmã sambista de verdade”, nas palavras do irmão Chico. O compacto foi extraído do seu primeiro álbum.
O pequeno disco chegou em casa nas mãos do Davi, meu irmão. Ele sim o sambista da minha casa, que me mostrou Partido em 5, Roberto Ribeiro, João Nogueira, Originais do Samba, os compositores de enredo, que me ensinou a amar o samba, ser antirracista e me fez entender que grande parte da beleza da música se deve aos negros, seus ritmos, versos e tramas melódicas e harmônicas.
Naquele 1974 tocava nas rádios o sucesso de “Quantas Lágrimas” do portelense Manacéa, que foi talvez o único sucesso da carreira da Cristina. Um lindo samba triste que gira até hoje nas rodas de samba mais temperadas. No complemento do compacto duplo tinha ainda “Comprimido”, do Paulinho da Viola, e “Confesso”, do Chico, irmão. A vitrola Grunding do centro de nossa sala tocou demais essas canções.
Mas o samba que grudou em mim até hoje era a primeira faixa do disco, composição da Ivone Lara e do Mano Décio da Viola (do Império Serrano), um samba lamento, triste, mas com saída otimista, daqueles que faz chorar, daqueles que invocam sentimentos poderosos que afastam o mal.
Nessa terça a noite ele veio forte, veio com lágrimas de redenção. Agradeço muito por ter essa história comigo.
“Agradeço a Deus”
A você eu jurei, não amar mais ninguém
porque meu coração já cansou de sofrer
e é triste é cruel a dor de uma paixão
cansei de ser escravado da desilução
Já não tenho prantos para derramar,
da vida ruim que levei não quero lembrar
Hoje sou feliz me reencontrei, vivo com
alegria pois da nostalgia já me separei
Hoje sou feliz me reencontrei, vivo com
alegria pois da nostalgia já me separei
Sinto que cheguei a realidade quando expulsei a
saudade
que no meu peito eu retinha em vão
e depois como prova de coragem
eu impus a minha vontade,
quanto desprezo no meu coração
E agora estou vivendo sozinho
sem ter amor e carinho
e longe de qualquer paixão,
E agradeço a Deus
já posso sorrir
comigo não há mais tristeza
só tenho alegria no meu coração.