Eu estava lendo “Apocalípticos e integrados”, do Umberto Eco, para um projeto sobre histórias em quadrinhos. Apesar de ter um projeto pessoal de só ler mulheres durante 30 meses, abri exceção para livros de estudo e biografias de mulheres, porque infelizmente a grande maioria no mercado editorial e referências acadêmicas ainda são homens, embora isso está mudando, felizmente.
Durante este estudo, alguns trechos chamaram a minha atenção e me fizeram pensar nas questões atuais que tento esboçar aqui.
“O Superman só se sustenta como mito se o leitor perder o controle das relações temporais e renunciar a raciocinar com base nelas, abandonando-se, assim, ao fluxo incontrolável das estórias que lhe são contadas e mantendo-se na ilusão de um contínuo presente.”
Oras, vejam só, o “mito” se configura porque o leitor perde o controle das relações temporais. Perder o controle das relações temporais é algo bem comum na nossa sociedade, em que se cultua o passado e a máxima de que “no meu tempo que era bom” ou “no meu tempo não era assim”. No Brasil, cultua-se, inclusive, um período obscuro e antidemocrático em que as “coisas eram melhores”.
O controle e o entendimento das relações temporais é algo desenvolvido com conhecimento histórico, senso crítico e capacidade de análise, habilidades desenvolvidas por volta da adolescência em disciplinas de bases humanísticas. Entretanto, se não temos disciplinas como história, filosofia, sociologia, como manter o controle das relações temporais e suas conexões de causa e efeito?
Se, ao invés de entender o tempo, nos dedicamos apenas ao aprendizado de tarefas técnicas, ou de educação moral e cívica, como não renunciar a raciocinar com base em relações temporais?
Relevem o devaneio, já estou a traçar paralelos. O trecho mencionado fala, na verdade, sobre a forma como a narrativa do Superman é construída através da confusão nos relatos dos acontecimentos, de modo que o leitor nunca tem certeza do que aconteceu antes e o que aconteceu depois, evitando também marcos temporais, como relacionamentos e grandes acontecimentos que possam marcar a passagem do tempo.
Isso o constitui como um mito, como algo atemporal. Parece-me, e perdoem se fui muito longe na associação de ideias, que a ausência de grandes marcos temporais que nos lembrem quando foi instituída – ou restituída – a democracia, faz com que ela seja sempre algo fluido e não palpável, nos permitindo acreditar em mitos e aceitar a renúncia da racionalidade como coisas possíveis, desconsiderando relações temporais e de causa e efeito.
Uma “transição lenta, gradual e segura para a democracia” nos embaça a memória para o fato de que TUDO depois disso é, deve ser e precisa continuar sendo democracia.
Um outro trecho, que trago abaixo, fala sobre histórias em quadrinhos como produto de massa e a reação, pelo público, à morte de personagens queridos/populares. São histórias que possuem grande apelo popular. O capítulo traz relatos de ações sérias de grupos da sociedade americana, se manifestando sobre a morte de certos personagens como se fosse a morte de pessoas.
Os relatos vão desde revolta e indignação expressas por leitores via carta aos roteiristas, até velórios, homenagens, anúncios em programa de rádio ou tv.
“O histerismo provém da frustração de uma operação empatizante, uma vez que passa a faltar o suporte físico de projeções necessárias. Cai a imagem e, com ela, caem as finalidades que a imagem simbolizava. A comunidade dos fiéis entra em crise, e a crise não é só religiosa mas também psicológica, porque a imagem revestia uma função demasiado importante para o equilíbrio psíquico dos indivíduos”. (grifo meu)
Um mito, desenhado a partir de um personagem que nem é real. O apego ao suporte dessas projeções necessárias ao indivíduo, geralmente medíocre, na tentativa de se reconhecer em algo maior que si mesmo. Soa familiar? Entretanto, o desmonte dessa imagem pode não ser algo necessariamente útil, uma vez que essa estrutura é, também, psicológica.
“Os imaginary tales são frequentes, como também os untold tales, isto é, os relatos que concernem a acontecimentos já narrados, mas em que ‘se esquecera de dizer alguma coisa’, pelo que são recontados sob outro ponto de vista, descobrindo-lhes aspectos laterais. Em meio a esse bombardeio maciço de acontecimentos já não mais ligados por nenhum fio lógico, nem mutuamente dominados por nenhuma necessidade, o leitor, naturalmente sem se dar conta disso, perde a noção da ordem temporal.” (grifos do autor)
É viagem minha, ou isso parece mais sobre a imprensa e a política brasileiras, do que com histórias em quadrinhos? Um recurso quadrinístico ser usado como recurso jornalístico não nos surpreende, dado o histórico das origens das histórias em quadrinhos e a relação íntima de ambos até os dias atuais. O que surpreende é a tentativa de transposição dos recursos para a criação de mitos dos quadrinhos para a realidade.
“Uma vez que não é isolado exemplarmente numa dimensão de eternidade, mas, para ser compartilhável, tem que estar inserido no fluxo da estória em curso, essa estória em curso é negada como fluxo e vista como presente imóvel.
Ao habituar-se a esse exercício de presentificação contínua do que acontece, o leitor perde, ao contrário, consciência do fato que o que acontece deve desenvolver-se segundo as coordenadas das três estases temporais. [passado, presente e futuro]. Perdendo consciência delas, esquece os problemas que nelas se baseiam: isto é, a existência de uma liberdade, da liberdade de fazer projetos, do dever de fazê-los, da dor que esse projetar comporta, da responsabilidade que dele provém, e enfim da existência de toda uma comunidade humana cuja progressividade se baseia sobre o meu projetar”.
Parece-me que é apenas a partir da construção de um projeto forte o suficiente que permita estruturar uma base de compreensão para que os indivíduos não percam (e nem se percam) mais (n)as relações temporais, que conseguiremos evitar que se abdique tão facilmente da racionalização.
Também faz-se necessário pensar no volume de informações a que temos acesso hoje em dia, que mais desinformam do que informam, como tantxs pesquisadorxs têm apontado. Essa é uma reflexão em construção. Reflitam também.
Obs.: Tentem reler os trechos citados entre aspas colocando um “e” na frente da palavra “leitor”.