A literatura tem um papel fundamental na formação do ser humano. Entre outras funções, ela oferece a oportunidade de abordar e discutir temas polêmicos, promovendo debate e reflexão. Particularmente, temas delicados e difíceis, como a sexualidade, por exemplo, ainda hoje são vistos como tabu por muitas famílias. Ainda mais difícil é o diálogo em relação à prevenção contra a violência sexual infantil. 

A falta do diálogo, esse perverso silêncio selado pela ignorância, acarreta muitas vítimas em nosso país. Entendemos que esse enfrentamento não é responsabilidade apenas da família. Como propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em julho deste ano completou 30 anos, cabe ao governo promover políticas públicas nessa área. 

Compete ao Estado, através das leis vigentes, promover ações e medidas protetivas por meio dos órgãos de proteção às crianças e adolescentes como, também, através de seus aparelhos ideológicos (família, escola, igreja), colocar em debate a pauta da educação sexual na conscientização e enfrentamento a essa violência.

Levantamento do Ministério da Saúde aponta que o Brasil registrou 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes em 2018. É o maior número desde 2011, ano em que os agentes de saúde passaram a ter obrigação de computar os atendimentos.

Os dados no Brasil sobre a violência sexual infantil são alarmantes, com três crianças sendo abusadas sexualmente a cada hora. O mais grave é que, dentre os casos registrados no levantamento do Ministério da Saúde, dois terços ocorreram dentro de casa. 

A cada quatro casos, em um deles os abusadores faziam parte do círculo de amigos ou conhecidos da vítima, em 23%, o pai ou padrasto. Os dados indicam ainda que a maioria dos casos de violência e abuso sexual ocorrem na primeira infância, daí a importância da literatura infantil e juvenil ser potencializada e direcionada, de forma lúdica e sutil, para informação, orientação e combate à exploração e violência sexual infantis. 

Por meio da literatura, podemos promover um “olhar investigativo” em relação à convivência familiar, despertando na sociedade e no relacionamento familiar um comprometimento com a proteção da criança e do adolescente, sua formação e bem-estar. Infelizmente, há uma escassez na literária infantil de títulos voltados para promover esse “olhar investigativo”, abordando a prevenção à violência sexual infantil na família. 

Embora sejam poucos, os livros dessa temática usam linguagem acessível e adequada. Embora complexas, se mediadas por um adulto, as mensagens podem ser transmitidas e absorvidas pelos leitores infantis e juvenis junto da história, havendo situações sutis e pontuais em relação à prevenção, ao cuidado e ao estado de alerta que as crianças precisam ter em relação ao próprio corpo, para perceberem quando estão em perigo.

Desmascarar esse monstro com muitas faces a partir do enfrentamento é um desafio da sociedade, principalmente das instituições educacionais, nas quais as bibliotecas escolares, públicas e comunitárias estão inseridas por serem espaços de acolhimentos, reflexões e trocas.

Em 2019, ao trabalhar sobre o tema abuso sexual cometido contra crianças e adolescentes, a equipe da “Tecendo Uma Rede de Leitura”, uma das bibliotecas da Rede de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), identificou, em uma roda de conversa, o relato de cinco crianças que haviam sofrido algum tipo de abuso sexual, no passado e recentemente. A atividade serviu de encorajamento para algumas dessas crianças relatarem a situação às suas mães, as quais nos procuraram posteriormente para agradecer.

A literatura, entendida como ferramenta de informação, passa a ser também um instrumento de percepção e prevenção para que a criança e o adolescente, através da leitura e/ou da mediação, compreendam se estão em situação vulnerável de violência ou exploração sexual, ao refletir um texto literário e comparar com sua própria realidade.

Para cumprir esse objetivo, relacionamos algumas sugestões de livros. Na literatura infantil, temos “Pipo e Fifi: ensinando proteção contra violência sexual na infância”, de Caroline Arcani, livro direcionado para os pequeninos, abordando questões relacionadas ao toque do sim e ao toque do não. As crianças aprendem os nomes das partes íntimas conforme são nomeadas.

Ainda para um público infantil, temos “Segredo Segredíssimo”, de Olívia Barros, com a personagem Adriana, menina triste que tem um segredo segredíssimo. Sua salvação vem da amiga Alice, que é muito esperta e tem uma mãe que a orienta sobre a vida e assim convence Adriana a falar de onde vem sua tristeza e temor.

Para o público juvenil, mais independente na leitura, e também para os adultos ficarem mais atentos, com um “olhar investigativo”, uma boa indicação é “A beleza de um Cacto”, de Mariana Ramos. A trama traz a filha caçula, muito rebelde e mal humorada, descontente com tudo e todos, enquanto seu irmão era o exemplo de filho estudioso e inteligente, orgulho dos pais. A revolta é devido ao abuso sofrido na infância pelo próprio irmão. Só depois de adolescente entende que o gesto de carinho excessivo não era de um irmão amoroso, e sim de um monstro.

Com essas histórias, percebemos o quanto a literatura é importante para transformar, resgatar e até mesmo salvar vidas ou simplesmente curar feridas. Outubro é um mês carregado de simbolismo, envolvendo o Dia das Crianças, dos professores e de um objeto que interliga esses atores: o livro. 

Essas datas comemorativas são uma boa oportunidade para que espaços sociais, culturais e educativos explorem esses assuntos. As bibliotecas comunitárias, em seu papel social intermediado pela literatura, desenvolvem atividades relacionadas a esses temas, usando da criatividade permitida pela tecnologia, dentro das limitações do isolamento social que ainda estamos atravessando.

*Colaboraram na escrita deste artigo:  Alexsandra da Silva do Nascimento – Coordenadora e mediadora de leitura do Espaço Literário Gigi Guerra e Fernando Trajano – Coordenador do Tapete Literário. 

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