Desde a graduação tenho estudado e refletido sobre a inserção das culturas africana e afro-brasileira na biblioteconomia. Atuei como bolsista no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina (NEAB/UDESC), o qual me inseriu no mundo de intelectuais negras(os) e suas contribuições para a discussão sobre as relações étnico-raciais, estudos descoloniais, epistemologias não-hegemônicas, entre outras perspectivas antirracistas. Dentro do meu curso, a discussão sobre as populações negras, suas necessidades de informação para transformação social, política e educacional, assim como o estudo de intelectuais negras(os) da biblioteconomia era algo limitado.
Meu trabalho de conclusão de curso, orientado pela professora Daniella Pizarro, me permitiu fazer um estudo da inserção da questão étnico-racial no ensino de biblioteconomia daquela instituição, a partir das percepções docentes. De posse dos resultados da pesquisa e com todo o trabalho realizado pelo NEAB/UDESC durante anos, assim como as pesquisas voltadas para as discussões étnico-raciais feitas pelas bibliotecárias negras Graziela dos Santos Lima, Sandra Fontes e Andreia Sousa da Silva – que, como eu, atuaram como bolsistas do NEAB/UDESC – além do trabalho da professora Daniella Pizarro junto ao Departamento, foi introduzida a disciplina de Relações étnico-raciais durante a reformulação do currículo de biblioteconomia. Inclusive, a Andreia Sousa da Silva foi aprovada como professora assistente para atuar nesta disciplina, o que foi um grande ganho para o curso.
Posteriormente, na dissertação, o intuito foi ampliar em nível nacional a análise da introdução das culturas africanas e afro-brasileiras nos cursos de biblioteconomia brasileiros. Assim, fui aprovada no mestrado em ciência da informação, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT/UFRJ) e, neste programa, fui orientada pelo professor Gustavo Saldanha, o qual incentivou que eu fosse o mais longe possível dentro da pesquisa em busca de perspectivas contra-hegemônicas e voltadas para às problemáticas sociais na Biblioteconomia.
Foi também o professor Gustavo que comentou sobre a Black Librarianship Americana como um movimento internacional dessas perspectivas e incentivou que eu explorasse os aspectos históricos, teóricos e os protagonistas desse movimento. Estudando sobre tal movimento dos Estados Unidos, descobri uma infinidade de bibliografias, intelectuais, eventos e ações dentro do movimento associativo e da área que demonstraram o percurso em prol do acesso de pessoas afro-americanas à formação em biblioteconomia, às bibliotecas e informação durante o período de segregação.
A partir daí, voltamos nosso olhar para o contexto brasileiro e nos perguntamos se existia uma Biblioteconomia Negra Brasileira (BNB). Elaborei um formulário para encontrar bibliotecárias(os) negras(os) pelo país e o lancei nas mídias sociais. O retorno foi muito positivo, pois descobri várias pessoas negras bibliotecárias, muitas ainda desconhecidas para mim.
Com uma ampla coleta de dados, desde eventos até os currículos lattes de bibliotecárias(os) negras(os), foi possível comprovar a existência da Biblioteconomia Negra Brasileira a partir do movimento reflexivo que discute a formação na área, a atuação bibliotecária de profissionais negras(os), presença e atuação no movimento associativo e a produção científica realizada por bibliotecários negras(os) e não-negras(os) sobre questões étnico-raciais.
Dentre os dados, encontramos o primeiro livro que aborda sobre o negro, o qual foi elaborado e publicado em 1988 pela Biblioteca Nacional e se chama “Para uma história do negro no Brasil”. Encontramos também a atuação de bibliotecárias(os) negras(os) dentro de associações profissionais, FEBAB, conselhos federal e regionais da área. No Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB), hoje, estamos no terceiro presidente do CFB bibliotecário negro, o professor Marcos Miranda. Dentre as primeiras graduações de pessoas negras em biblioteconomia encontramos a Regina Tonini, que por muitos anos foi bibliotecária da Petrobrás. Na docência, a professora Maria Aparecida Moura como primeira professora e bibliotecária negra titular da Escola de Ciência da Informação e com importante produção científica e atuação profissional em prol de causas antirracistas e das ações afirmativas dentro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Os eventos científicos como o Painel Biblioteconomia em Santa Catarina, o Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação (CBBD), em Santa Catarina, Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ENANCIB), também contaram com apresentações de trabalhos e palestras que tinham o recorte étnico-racial. Importante frisar que houve um aprofundamento na produção científica e em estudos de pós-graduação no campo, a partir da implementação da Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira (LDB) e da Lei nº 10.639/2003, que trouxeram a obrigatoriedade do ensino de história e cultura negras nas redes de ensino brasileiras.
Com a análise do currículo lattes e com os dados do mapeamento, verificamos que existem bibliotecárias(os) negras(os) que realizam ações enfoque étnico-racial dentro das bibliotecas brasileiras, mesmo que muitos não divulguem essas ações via produção científica. Assim, englobando tudo isso criamos a Cronologia da Biblioteconomia Negra Brasileira – publicada nos anexos da dissertação.
A pesquisa demonstrou que há tempos a questão étnico-racial tem sido abordada, refletida e discutida dentro do campo biblioteconômico-informacional, em especial por pessoas bibliotecárias negras. Ou seja, esse movimento da Biblioteconomia Negra não é novo – vide a Black Librarianship Americana que tem sua existência datada desde 1808 -, o que ainda existe é um discurso de que são discussões e pesquisas inaugurais, quando na verdade bibliotecárias(os) negras(os) já estão pensando a formação bibliotecária (que ainda possui um viés eurocentrado e norteamericanizado, em grande parte fora das realidades do nosso país); o racismo presente nas relações; a branquitude presente nas práticas profissionais e na docência, responsabilidade ético-política para a cidadania etc. E mais importante: estão buscando soluções para resolver esses problemas.
Dentre os pontos positivos tenho percebido a ampliação do movimento de bibliotecárias(os) negras(os) pelo país. Atualmente temos o Coletivo Nacional de Bibliotecárias(os) Negras(os), cuja criação aconteceu a partir da união das pessoas autoras da obra coletiva “Bibliotecárias(os) Negras(os): ação, pesquisa e atuação política”, publicada pela Associação Catarinense de Bibliotecários em 2018. Há também a formação de Coletivos Regionais, como o Coletivo de Bibliotecárias(os) Negras(os) de São Paulo e outros ainda em construção.
Além disso, a criação do Encontro Nacional de Bibliotecárias(os) Negras(os) e Antirracistas, cuja a primeira edição foi realizado no ano passado, agregou pessoas bibliotecárias negras e não-negras para discussão de diversas ações de engajamento em prol de melhores condições de emprego e trabalho, acesso à educação e à capacitação, desconstrução do racismo institucional e estrutural, além de ações voltadas para o fortalecimento identitário das populações de origem africana em bibliotecas e unidades de informação.
No entanto, apesar da existência da Biblioteconomia Negra Brasileira, quando chegamos à formação bibliotecária, esse movimento ainda é desconhecido, assim como é incipiente a introdução das culturas africanas e afro-brasileiras nos currículos dos cursos presenciais de biblioteconomia brasileiros. Na pesquisa, identificamos 16 disciplinas sobre as questões étnico-raciais em mais de 2.200 analisadas. Ainda, nas entrevistas com docentes vimos que mesmo considerando importante as temáticas, percebemos que muitos ainda desconhecem intelectuais negras(os) da biblioteconomia, pesquisas e projetos sobre essas questões, assim como poucos introduzem essas discussões em sala de aula.
A falta de formação para uma biblioteconomia antirracista e afrodiaspórica traz essas e outras consequências, especialmente em uma sociedade como a brasileira, onde a branquitude e o racismo são estruturantes e estruturadores das relações sociais, trabalhistas, políticas e econômicas; e o mito da democracia racial e a meritocracia são utilizados como justificativas frente às desigualdades presentes na sociedade.
Somente com uma transformação curricular dos cursos que promova conhecimento sobre aspectos sociohistóricos de construção do país e percepção crítica sobre manutenção das desigualdades e opressões sofridas pelas populações negras – que são deixadas à margem para exploração de uma sociedade capitalista – é que poderemos formar profissionais com consciência ético-política, comprometidos com a diversidade e sensibilizados para questões sociais e étnico-raciais. O que se espera é o enfretamento dos obstáculos supracitados para a construção de uma Biblioteconomia brasileira com um currículo antirracista, que contemple epistemologias diversas e perspectivas coletivas de construção cidadã de uma sociedade.
Mapeamento de bibliotecárias(os) negras(os)
Na esteira desse debate e dessas pesquisas, estamos realizando o mapeamento de bibliotecáras(os) negras(os). O intuito é conhecer e visibilizar a todas as pessoas negras da biblioteconomia no doutorado. Quero me aprofundar nas epistemologias negro-africanas da biblioteconomia e no pensamento de bibliotecárias(os) negras(os) para visibilizá-los como intelectuais e colaboradoras(es) da construção da nossa profissão em todos os setores, desde o ensino até a atuação. Para colaborar com a pesquisa, as pesquisas podem acessar o link do mapeamento clicando aqui. Os livros sobre e por bibliotecári@s negr@s podem ser baixados aqui.