Recentemente fui marcado em uma postagem compartilhada pela Febab. Amigo de Face, colega de profissão, tema de sempre: o mundo das bibliotecas. Dessa vez, a inauguração de um edifício nababesco lá pelos lados do Oriente. Chamada de “Jardim dos Livros de Teerã”, tem cerca de 110 mil m² de área e com capacidade para 240 mil obras. O complexo abrigará livrarias, lojas, cinemas e centros científicos.
Pelos trópicos, os bibliotecários babaram: “Que maravilha!”; “Sabia que o paraíso ficava no Oriente.” Alguns mais ousados elogiaram o governo iraniano, apontando-o como “exemplo a ser seguido por todos os governos.” Um tipo piadista chegou a declarar seu amor pelo regime: “Se lá é a casa do diabo, como diz o recalcado Tio Sam, então me chama para ser o bibliotecário do demo! Que baita civilização oriental.” Respirei fundo e lamentei. Lamento elevado ao quadrado.
Primeiro, constatei que o “Jardim dos Livros” não se assemelha em nada à biblioteca paradisíaca aventada por Cícero:[1] “Si hortum in bibliotheca habes, deerit nihil.” Pudera. A maior parte dos seus 15 milhões de habitantes vive ao sul da cidade, vizinho ao Grande Deserto Salgado (Dasht-e Kavir). Areia pouca resulta em pérola. Muita, é movediça, gulosa, engolideira. No Irã, quem come quem?
Desde a Revolução Islâmica de 1979, mulheres cobertas com o hijab passeiam, envergadas sob o peso das sutras: “Vossas mulheres são vossas sementeiras. Desfrutai, pois, da vossa sementeira, como vos apraz”.[2] Enquanto mergulhava no Corão para me convencer de que se tratava de uma hermenêutica misógina tosca e minoritária, leio em fonte confiável que o presidente iraniano Hassan Rouhani acaba de contratar 7.000 novos guardas para a Polícia da Moral, responsável em verificar se o véu feminino está bem colocado e se elas, as “sementeiras”, não o tiram quando estão dentro do carro.
Pois a Biblioteca Jardim, sonho de tantos bibliotecários brasileiros, não fica longe dali. Lá também reina a xariá. Talvez por isso não tenha visto flores por aquelas bandas. Apenas um extenso gramado monocromático. Um deserto verde-sintético, frequentado por tipos dóceis, submetidos aos filtros instalados nos computadores e nas cabeças dos bibliotecários.
O salão de leitura é invadido pela voz poderosa do muezim: “Allah Akbar, Allah Akbar”[3]. Corpos prostrados: “Hayya alal-Falaah”[4]. Entre as belas estantes – mobiliário de primeira! – observo buracos enormes, fruto do trabalho diligente de experts em desenvolver acervos adequados: “Allah Akbar. Laa ilaha il-la Allah[5].”
Diariamente, as palavras do aiatolá Ali Khamenei[6] são remoídas, em voz baixa, nas baias de trabalho: “Nem todos os livros são necessariamente bons e nem todos são seguros. Alguns livros são prejudiciais. Do mesmo modo que medicamentos venenosos, perigosos e viciantes não estão disponíveis para todos sem restrições, não temos o direito, como bibliotecário, disponibilizar [esses livros] para aqueles sem conhecimento. Devemos fornecer-lhes livros saudáveis e bons.”
Não demorou para que a preleção teológica se convertesse numa brochura fininha, marcada pelo tom direto, quase virulento, livro de cabeceira dos bibliotecários ortodoxos: “Enforquem Ulysses[7] e apedrejem a Monalisa holandesa de Chevalier[8]. Eliminem das estantes Paulo Coelho[9] e Gabriel García Márquez[10]. Exorcizem de seus tesauros “beijo”, “vinho”, “dança” e todos os outros verbetes ímpios. Clareza de aitatolá, pra não deixar margem a dúvidas. “Allah Akbar, Allah Akbar”[11].
Da janela fosca do processamento técnico, vi guindastes gigantes, instalados na praça principal. No dia anterior, foram ali dependurados, entre brados e suratas, dois jovens. Crime? Eram gays. Num relampejo, recordei de todos os corpos suspensos por cordas, filtros, buracos, silêncios e palavras na Biblioteca-Jardim. Constatei a ausência de qualquer limite, raia ou cancela entre a grande praça e o balcão de referência. Concluí que o Jardim dos Livros é terra inóspita e abrolhada, mímesis do Grande Deserto Salgado.
O segundo queixume foi tão indigesto quanto o primeiro: a desinformação de alguns bibliotecários brasileiros. Cegados pelas instalações majestosas do “Jardim dos Livros”, não apenas confundiram biblioteca a edifício, mas deram ares de epopeia a um equipamento cultural utilizado para excluir e oprimir. Descuido ou descaso? O caso não envolveu gente desavisada, desprovida de traquejo no mundo labirintado da informação registrada, povoado por godos e criollos e engodos. A rata foi disseminada por um categoria profissional, formada nas melhores universidades do país, para servir de “filtro que se interpõe entre a torrente de livros e o homem”. [12]
Não desqualifico o juízo de nenhum bibliotecário. Quem filtra, julga. Afinal de contas, o que é uma biblioteca senão o resultado final de um processo de joeiramento? A todo tempo, seja na compra ou na indexação, cotejamos verdades, segregamos e apaziguamos saberes; secretamos e franqueamos poderes. Atribuir locus às manifestações humanas a partir das combinações de números, letras, tags e abstracts, por exemplo, é reflexo de tornar plausível esse mundo, irrevogavelmente marcado pela arbitrariedade.
Esse movimento de “dar nome aos bois” se torna um problema quando o ajuizamento se manifesta impávido, apesar da ignorância em relação aos sujeitos e contextos. O juízo verborrágico e impiedoso agravou-se nos últimos anos, graças às redes sociais, insuflado pelo culto ao binarismo, sempre tão patético e desavergonhado.
Umberto Eco, em uma cerimônia na Universidade de Torino, afirmou que a Internet deu voz a todo tipo de opinião desqualificada. Concordo com ele. Agredido por internautas sabichões, o escritor italiano argumentou, serenamente[13]: “O sujeito pode ser um excelente funcionário ou pai de família, mas ser um completo imbecil em diversos assuntos. Com a internet e as redes sociais, o imbecil passa a opinar a respeito de temas que não entende.” Somos iguais em desgraça? Parece que sim.
Suspeito que não escapamos da valentia insensata recorrente entre os dois bilhões de usuários do Facebook. Contudo, sobre eles incide o descuido, sobre nós, o descaso. É justo que o preço a ser pago seja mais alto a quem pretendeu ser filtro entre os homens e suas memórias. Quem duvida que a ode dirigida aos aiatolás em relação ao bendito Jardim dos Livros tivesse sido prontamente abortada com uma pesquisa rápida à Internet. Era o que se esperava de um bom bibliotecário.
Biblioteca é antônimo de deserto. A monocromia da areia e o sibilado unívoco da ventania devem ser combatidos. Toda biblioteca deve resistir à tentação de ser transformada em filial do governo ou comitê de partido. Atuamos em prol da dignidade de pessoas. Militamos em desfavor de toda geografia política destinada a reduzir, por meio da incidência de saberes uniformizadores, indivíduos em assujeitados. “A cada leitor seu livro, a cada livro seu leitor…”.
E o que assistimos no Irã? A impossibilidade de que as flores, de tamanho e coloração distintas, cresçam por entre os corredores das estantes, nas coleções para adolescentes púberes, nos catálogos de literatura ocidental, no setor de catalogação e, especialmente, nas cabeças dos que a frequentam. Selvageria embrulhada em papel de presente não merece louvação, mas rechaço.
Aos mais receosos, merece lembrar que toda biblioteca, por mais modesta que seja, toma para si a tarefa de sanar problemas, o que se dá pela reunião, tratamento e disseminação de vozes. Somos, portanto, especialistas na arte de estabelecer confrontos, evitando, a todo custo, nos comprometer com saídas simplistas.
Cismar, duvidar, estranhar e hesitar são verbos preciosos a qualquer bibliotecário. Se postos em prática, tanto no tête-à-tête quanto nas redes sociais, evitaríamos situações constrangedoras, como incensar bibliotecas que atentam contra a dignidade humana, acusar o Conselho Regional de malemolência, confundindo sua competência com à do sindicato, e injuriar colegas nas redes sociais, jogando na mesma lata do lixo o nosso Código de Ética e o Código Penal. Que a tremenda mancada envolvendo o arenoso Jardim dos Livros nos convença de que cada palavra dita, postada e curtida é dívida social contraída.
[1] CÍCERO. À Varron. In:______. Correspondance, VII. Paris: Les belles lettres, 1991. p. 4.
[2] ALCORÃO. O Alcorão. Tradução, Mansour Challita. Rio de Janeiro: Acigi, [199?].
[3] Deus é Grande.
[4] Venha para a salvação.
[5] Deus é grande. Não há divindade que mereça ser adorada senão Allah.
[6] DEHGHAN, Saeed Kamali. Iran’s supreme leader attacks ‘harmful’ books. The Guardian, Londres, 21 July 2011. Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/2011/jul/21/iran-supreme-leader-attacks-books>. Acesso em: 14 jul. 2017.
[7] JOYCE, James. Ulysses. New York: L. Oliemeulen, 1969.
[8] CHEVALIER, Tracy. Moça com brinco de pérola. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
[9] COELHO, Paulo. O Zahir. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.
[10] GARCÍA MARQUEZ, Gabriel. Memoria de mis putas tristes. Madrid: Debolsillo, 2009.
[11] Deus é Grande.
[12] ORTEGA Y GASSET, José. Missão do bibliotecário. Brasília: Briquet de Lemos, 2006. p. 46.
[13] ECO, Umberto. A conspiração dos imbecis. Veja, São Paulo, 26 jul. 2015. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/brasil/a-conspiracao-dos-imbecis/>. Acesso em : 12 jul. 2017.