No último dia 16 de março o ministro da Cultura, Roberto Freire, recebeu em Brasília representantes da Amazon, a gigante do mercado editorial mundial. Dentre os temas da pauta estava o de criação de um grupo de trabalho, cujo objetivo seria o de analisar, discutir e propor mudanças na legislação referente ao depósito legal, que no Brasil é regulado por duas leis, e à inclusão da guarda de publicações digitais.
Conforme notícia veiculada pelo PublishNews, o bibliotecário Cristian Brayner, que é diretor do Departamento do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (DLLLB) do MinC, esteve presente nesta reunião e destacou que o Brasil vive uma questão delicada em relação à custódia da sua memória bibliográfica, sobretudo no que se refere à guarda de publicações digitais, o que ensejaria as mudanças.
A possibilidade da participação da Amazon neste processo provocou insatisfação entre os bibliotecários da Biblioteca Nacional que trabalham diretamente com a questão. Mas do que criticar a possibilidade de incluir uma empresa privada numa questão de interesse eminentemente público, os profissionais também se mostraram descontente pelo fato de que entre as pessoas que encabeçam a ideia está um bibliotecário, o diretor do DLLLB.
“Fiquei ainda mais impactada por saber que a questão do processo do grupo de trabalho tem um colega envolvido diretamente, que tem esse braço da biblioteconomia e não procurou os bibliotecários e colegas da Biblioteca Nacional”, desabafou Luciana Grings, bibliotecária e coordenadora de Serviços Bibliográficos da Biblioteca Nacional. Nesta entrevista Grings, que é mestre e doutoranda em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de janeiro (UNIRIO), explica o que é deposto legal e como se dá o seu funcionamento.
Um dos objetivos do depósito legal é assegurar o registro e a guarda da produção intelectual nacional. Você poderia explicar como é esse processo?
Um dos pontos importantes de ser lembrado é que o depósito legal não é uma invenção brasileira e também não é recente. Depósito Legal é um dispositivo que começou na França há quatro séculos e apesar de hoje em dia ele servir muito bem aos propósitos de continuar compondo uma memória nacional, ele começou como uma garantia de que o Rei tivesse toda a produção intelectual dos seus súditos. Atualmente o propósito mudou, mas continua servindo muito bem a ideia da república.
No Brasil temos o Depósito Legal muito antes de sermos uma nação porque Dom João [VI, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de 1816 a 1822] veio [ao Brasil em 1808] e trouxe o mecanismo das propinas e dizia que tudo que fosse impresso deveria ser enviado a Real Biblioteca. Tivemos a evolução da legislação do depósito legal para o período republicano e depois com a Constituinte de 1988 começou a ter outras propostas de lei, inclusive a legislação que está em vigor foi proposta em 1989 pelo Jarbas Passarinho, que foi ministro da Cultura e nomeou a primeira bibliotecária diretora da Biblioteca Nacional em 1971 [Jannice Monte-Mór presidiu a BN de 1971 a 1979].
A lei [lei nº 10.994/2004] tramitou 15 anos até ser promulgada em 2004. Em 2010 tivemos a promulgação da segunda lei de depósito legal [lei nº 12.192/2010] e que fala especificamente sobre materiais musicais, mas nenhuma delas foi regulamentada até hoje, ou seja, os dispositivos que especificariam quais são os materiais passíveis de depósito legal não foram estabelecidos. Por isso nós temos certa confusão referente ao tipo de material que é depositado. A legislação diz que os impressores são os responsáveis pelo depósito de pelo menos um exemplar de tudo que for publicado em qualquer suporte e isso inclui material digital. A legislação que veio posteriormente em 2010 assegurando e reforçando o depósito de material musical fala em três cópias.
Como nós não temos a regulamentação dessa legislação, adotamos dentro da Biblioteca Nacional, tendo em vista nossas dificuldades de cumprimento deste depósito, a cobrança de um exemplar de cada publicação. E no caso de material musical também cobramos uma cópia porque não é viável para nós mantermos as três cópias. Temos uma divisão dentro do setor de processamento e preservação, especificamente a coordenadoria de serviços bibliográficos que trabalha com toda parte de processamento técnico de material monográfico em particular. Temos a divisão de depósito legal, que é a responsável por fazer a intermediação entre impressores e o depósito legal dentro da biblioteca.
É um processo muito custoso porque são muitas pessoas e essa identificação de onde estão as falhas de coleções e onde estão os grandes nichos. Por exemplo, o cordel, que é um mercado rico, vasto e não conseguimos alcançar por conta da questão geográfica são os nossos grandes “calcanhares de Aquiles”. Temos uma equipe muito pequena e tivemos um acréscimo e agora temos seis pessoas fazendo para cobrir todas as publicações e todo um mercado do país. Temos o pessoal que faz o contato com as editoras. Os grandes grupos editoriais já têm o hábito de mandar para nós o material. Recebemos o material, emitimos um recibo e então ele entra no fluxo de processamento da Biblioteca Nacional.
Como funciona o depósito legal no exterior? Existe algum que você aponta como modelo ideal?
Modelo ideal pode ser um pouco perigoso pensar porque cada lugar tem as suas particularidades. Gosto muito do modelo de Portugal porque diz que o depósito deve ser feito em 10 ou 11 exemplares, ficando um na Biblioteca Nacional [local] e os demais nas bibliotecas das regiões – seria como os estados que temos no Brasil. Os modelos ideais têm de ser muito bem estudados. Em Portugal funciona bem porque o país é do tamanho do estado do Rio de Janeiro e eles têm outro relacionamento com as questões de cultura, preservação e memória. A Espanha também funciona assim e tem o depósito com dois ou três exemplares porque fica um para circulação e outro para preservação. É difícil falar em modelo ideal.
Como depositária da memória nacional, quais os maiores problemas enfrentados pela Biblioteca Nacional no que se refere ao depósito legal?
Os principais problemas da Biblioteca Nacional não são de hoje, eles estão relatados nos anais da Biblioteca desde o início e chamo de tríade da falta: falta espaço, pessoal e orçamento. Desde 1810, com o Luís Marrocos [bibliotecário da Real Biblioteca Portuguesa], a queixa é rigorosamente a mesma. Hoje nós temos uma biblioteca que parece ser muito grande, sozinhos temos quase metade da folha de pagamento do Ministério da Cultura. Só que ainda assim temos poucas pessoas para cuidar de um patrimônio deste tamanho.
Tenho seis pessoas cuidando das publicações do país inteiro de depósito legal, sem contar os outros setores que nem vou entrar na questão. Realmente temos poucas pessoas para as atividades que hoje em dia estão ganhando muito volume e importância na questão da preservação, que é o nosso foco. Temos a questão de custódia em função da vocação de preservação do material e de ser uma biblioteca que chamamos de última instância, ou seja, quando não há mais onde pesquisar é para isso que serve o acervo da Biblioteca Nacional.
Nossa Biblioteca Digital tem 20 pessoas trabalhando e isso não é nada; poucas pessoas trabalhando em um acervo tão grande. Temos todas as questões de inventário, divulgação e curadoria de acervo que não conseguimos dar conta por falta de pessoas. Falta também o orçamento para dar conta dessas coisas. Por exemplo, não estamos conseguindo comprar material há três anos.
Conforme noticiado recentemente pela imprensa, o ministro da Cultura convidou a Amazon para participar de um grupo de trabalho que está em formação dentro do Ministério da Cultura com o objetivo de analisar e propor mudanças na legislação referente ao depósito legal e na guarda de publicações digitais. Você tem conhecimento dessa ação?
Tenho e fiquei muito triste de saber que essa ação foi tomada à revelia da Biblioteca Nacional, que é a figura central da legislação do depósito legal. Fiquei ainda mais impactada por saber que a questão do processo do grupo de trabalho tem um colega envolvido diretamente, que tem esse braço da biblioteconomia e não procurou os bibliotecários e colegas da Biblioteca Nacional. Esteve aqui no prédio da biblioteca, mas não fomos procurados para conversar a respeito.
Com relação ao convite da Amazon, acredito que seja totalmente impertinente porque a questão do depósito legal tem a ver com patrimônio, preservação e memória. A Amazon é um braço mercadológico e não tem a menor pertinência um ente do mercado vir a discutir questões relativas a patrimônio. Principalmente se estamos falando de patrimônio digital. Temos uma biblioteca digital riquíssima, com mais de um milhão e meio de itens preservados e nós realmente vamos convidar um ator de fora para debater isso? Temos um Data Center de alta qualidade, profissionais extremamente gabaritados e somos a única biblioteca em língua portuguesa a ser fundadora da Biblioteca Digital Mundial. É no mínimo um pouco desrespeitoso com todo legado e trabalho que a Biblioteca Nacional faz neste sentido.
Uma das prováveis propostas do Ministério da Cultura é a de descentralização do depósito legal, fazendo com que as biblioteca públicas centrais de cada estado sejam as depositárias da memória local. Essa possibilidade, se confirmada, é viável?
Não. Nós já tivemos essa proposta algumas vezes ao longo da história e não é viável por motivos geográficos, financeiros, porque não conseguimos identificar quem vai se dispor a arcar com esse custo de depósito e, por fim, a questão elementar é a missão das bibliotecas; as bibliotecas pública não têm a missão de preservação. Se o depósito legal tivesse o objetivo de permitir que as bibliotecas usassem o material para fim de circulação, é uma coisa, agora obrigar bibliotecas públicas estaduais ao propósito de memória e de preservação patrimonial não tem o menor fundamento.
É para isso que serve uma Biblioteca Nacional; é para isso que existe como último recurso de pesquisa para o pesquisador que está empreendendo uma investigação mais criteriosa. Mas a missão de uma Biblioteca Nacional não se confunde com a de uma biblioteca pública. Essa é a nossa grande discussão atualmente. Nós temos um sistema de bibliotecas que tem de fundamentar da biblioteca pública: a divulgação de acervo, de incentivo à leitura, de espaço cultural, uma coisa que a biblioteca pública do Rio Grande do Sul faz muito bem.
Posso falar porque sou gaúcha e a biblioteca do Rio Grande esteve anos envolvida em problemas de reformas e conheço a diretora que é uma pessoa engajada nessas questões todas. Existe uma agenda cultural e social da biblioteca pública que não se confunde com a de uma biblioteca nacional.
O que se pode esperar não somente do Ministério da Cultura como do governo de uma forma em geral para tentar resolver alguns desses problemas relacionados ao depósito legal, como também as próprias necessidades da Biblioteca Nacional?
Honestamente não sei te dizer. Apenas por esse passo dado pelo Ministério em convocar um grupo de trabalho, cuja instituição principal não é convocada, acho bastante complicado. Acabei de ler uma matéria sobre uma provável nomeação para superintendente e diretor do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que provavelmente vai ser uma pessoa que não é do quadro de carreira.
Temos muitos problemas em relação a valorização dos servidores de carreira do Ministério. Por exemplo, tivemos uma greve realizada em 2007, cujo acordo foi de implantação de uma gratificação de titulação que nós não temos. Os bibliotecários do Ministério da Cultura são os piores remunerados do Executivo inteiro e nem vou dizer do caso da Casa de Rui Barbosa, que tem outra tabela remuneratória que é a da Ciência e Tecnologia. Que tipo de incentivo temos para trabalhar com cultura diante de um quadro desses? Honestamente não sei te dizer.