É como disse o velho Nietzsche numas das máximas de seu Além do bem e do mal: “Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”.[1] No momento em que inicio este texto, uma enxurrada de fatos obscenos e abismantes, no mínimo, resvala sobre as cabeças dos brasileiros.
Uma consulta pública do Projeto de Lei do Senado nº 193, de autoria do senador Magno Malta (um dos fiéis escudeiros da bancada evangélica que faz da política espaço para propagação de sua crença e de seus preconceitos), está em curso e quer saber quem é contra ou a favor do programa “Escola sem partido”, que deve alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996, assim como ferir gravemente os princípios da constituição de 1988 que asseguram a “livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (Título II, capítulo I, Artigo 5o, inciso IX). Apenas para ver a gravidade do projeto, vejamos o artigo II do referido projeto elaborado por mentes obsediadas:
A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:
I – neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II – pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;
III – liberdade de aprender e de ensinar;
IV – liberdade de consciência e de crença;
V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;
VI – educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII – direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.
Parágrafo único. O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.
Há uma semana estou acompanhando a disputa acirrada entre aqueles que entendem que isso não passa da lei da mordaça sobre os educadores e aqueles que se sentem no direito de dizer que o que deve prevalecer é a moral e os bons costumes, e quem decide isso são os pais[2]. Em diversos estados, as câmaras legislativas vêm tentando abolir dos programas de ensino a questão de gênero, os temas da sexualidade, usando como escudo a denúncia de que os professores querem pregar a ideologia de gênero, tão prejudicial à formação humana.
Usam, para justificar isso, o relato da criação humana segundo o livro do Gênesis, ou seja, um mito escrito pelo povo hebreu quando estava no cativeiro da Babilônia, e que, obviamente, precisa ser lido como é: um mito, cheio de belezas, é claro, mas mito, não servindo como legislação que define o que devemos ou não fazer e pensar enquanto homens do século XXI.
Esse tsumani conservador que se abateu sobre o Brasil confirma categoricamente que nosso amálgama ainda não foi concluído. Somos massa amorfa, sem identidade, inseguros, sem um mínimo de respeito pela diversidade, avessos à outridade. Aquela ideia de que o Brasil é a terra da pluralidade, colorido e alegre, não passa de fachada que encobre a face verdadeira que nos envergonha.
Onda avassaladora de conservadorismo, de fundamentalismo, de uma massa gritando enfurecida contra a ideologia do Marxismo, do Comunismo, exigindo que queimemos a memória de Paulo Freire e suas obras em praça pública. É preciso erradicar o mal de nossos lares, das nossas escolas, das universidades, dos espaços públicos. E só deve prevalecer o amor cristão, que redime, que sacrifica, que deseja o bem, desde que o alvo faça o que queremos, e pense exatamente como queremos que pense.
Ensinar com neutralidade significa o quê? Acaso há conteúdo que não exija uma opinião, o levantamento de hipóteses, a elaboração de argumentos, o espaço para o debate e a refutação e uma síntese? Por favor, me digam como ensinar a neutralidade? Entendo que ser neutro é ser anulado, é deixar de exercitar o que de mais interessante temos, que é a capacidade para defender nosso pensamento, estando ele errado ou não. Entendo que não existe escola sem que exercitemos a pluralidade de ideias.
E, nesse sentido, o inciso II anula o I porque não há pluralidade de ideias onde se pratica a neutralidade. Do mesmo modo, os incisos III e IV são anulados pelo primeiro, o que indica que quem elaborou tal projeto não tem um mínimo de respeito pela educação. Se o inciso VII dá pleno direito aos pais de decidirem o destino de seus filhos, não pode confundir escola com catequese ou doutrinação religiosa. Deixem que os pais escolham as escolas confessionais para seus filhos, mas não venham tornar confessional o ensino público. Somos ou não uma sociedade laica?
O projeto é tão esdrúxulo que se intromete na questão biológica do ser quando afirma que a escola acaba por favorecer a escolha do comportamento sexual dos alunos. Enquanto isso, diariamente, gays, lésbicas, trans são mortas brutalmente ou espancados nas ruas por aqueles que entendem que a natureza é heteronormativa. De que é que esses justiceiros têm medo? Por que estão tão preocupados com o desejo dos outros? Por que irrita a carícia entre pessoas do mesmo sexo em público? Por que é preciso neutralizar o desejo, a vida, o diferente? O que é ser normal afetivamente? Quem disse que ter um pênis e uma vagina resume nossa condição sexual? O que é a condição sexual? Por que a bancada da bíblia no congresso tem ditado as normas do prazer? Acaso não somos donos do nosso corpo e, por isso, podemos fazer com ele o que bem entendermos?
Dar crédito ao que esses legisladores estão tentando fazer é dizer “não” à formação humanista, é negar veementemente a liberdade da universidade, substituindo-a pela igreja. Que a igreja exista e arrebanhe seus fiéis isso ninguém discute. A própria constituição afirma a liberdade de culto, mas que se substitua o ensino pelo fundamentalismo religioso, isso não é só um contrassenso, é a própria inquisição que retorna para aniquilar o conhecimento.
Eu gostaria de saber por que um deputado ou um senador legisla em função de seu credo. Eu gostaria de saber por que não estamos discutindo a lei da reforma política, que deve ser amplamente debatida para evitar que no futuro pessoas sejam eleitas para defender suas famílias, suas igrejas e seus apadrinhados.
Enquanto escolas estão sendo proibidas de discutir o feminismo, o machismo, a sexualidade e as questões que envolvem o desejo, mulheres são espancadas aos montes por seus maridos, como se fossem seus donos, jovens são estupradas e culpadas por isso, crianças são aliciadas nas ruas e nas praias, tanto para a prostituição quanto para as drogas. E nós professores estamos de mãos atadas, sem entender como e por que chegamos ao século XXI como se tivéssemos chegado ao século retrasado.
O jornal O Globo publicou descaradamente um editorial cuja manchete afirma que o ensino superior gratuito é injusto[3] e por isso deve ser extinguido. Que será que isso tem a ver com o que estou discutindo? Por que um jornal tem a desfaçatez de dizer que nós professores é que devemos dizer? Quando acordaremos desse pesadelo que se tornou o Brasil? Estamos atônitos. Mas será que todos? E só para infernizar quem faz do meu cotidiano um inferno cotidiano ao legislar em nome de sua família e do seu “Deus”, encerro meu texto com Paulo Freire e o discurso contra qualquer forma de desumanização:
A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é porém, destino dado, mas resultado de uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido)
Contra a desumanização, contra qualquer forma de opressão, contra qualquer mordaça, é que nossa voz não deve se calar. E se somos fortes como dizemos que somos, se somos educadores, qualquer lugar é espaço de luta, inclusive as ruas. Já passou da hora de nós, professoras e professores, assumirmos que a educação é direito inalienável e com a qual não se brinca. Passou da hora de lutarmos contra o monstro do obscurantismo ou, como diria Nietzsche, de cuidarmos para que não nos tornemos monstros.
Ou será que o perigoso Paulo Freire não nos ensinou que, contra qualquer forma de opressão e alienação, é preciso gestar uma pedagogia da indignação?! É com essa certeza que me alimento todo dia. Contra mordaças que governos e legisladores sem legitimidade elaboram é preciso urgentemente montar barricadas.
[1]“Máximas e interlúdios”. Além do bem e do mal ou prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 70.
[2]Neste momento (23h00 de 25 de julho de 2016) 172.720 cidadãos brasileiros são a favor do projeto enquanto 182.820 são contra. É lógico que esse jogo vira a todo momento.
[3] O Globo, 24/07/2016, on line: pesquisado em 25 de julho de 2016.