Mara Vanessa Torres - capa 2

“Aqui é o Brasil em transe, o Brasil imerso e em diálogo permanente com suas contradições mais profundas”. A declaração, quase um aforisma, é dita pelo historiador Aristides Oliveira em entrevista à Revista Biblioo. Professor de História da Universidade Federal do Piauí (campus Floriano) e editor da Revista Acrobata, Aristides está prestes a lançar seu primeiro livro. Com o título “Jomard Muniz de Britto e o palhaço degolado”, a obra é um mergulho nos debates em torno da teoria da cultura brasileira nos anos 70, tomando como eixo central a obra cinematográfica O Palhaço Degolado, realizada pelo professor Jomard Muniz de Britto em 1977. Aristides Oliveira investiga os elementos textuais e visuais do super-8 para compreender as tensões político-culturais no Brasil e em Pernambuco no regime militar.

Em seu trabalho, Aristides trafega entre a produção superoitista e a vida de Jomard Muniz de Britto, circulando pelos empoderamentos tradicionalistas e na subversão dos “fora do poder”, nômades que seguem além dos mapas e cartilhas oficiais. A entrevista foi realizada em meio a sentimentos contraditórios, já que felicidade pela concretização – em formato literário – de anos de pesquisa do historiador lida com a dor e tristeza vivida pelo meio cultural de Teresina, cidade em que vive Aristides. No dia 26 de junho, por volta das 23h40, um trágico acidente de trânsito vitimou três integrantes do Coletivo Salve Rainha, importante tecnologia social de valorização do patrimônio cultural teresinense. Um dos jovens morreu e os outros dois estão internados em estado grave. O grupo Salve Rainha realiza intervenções artísticas-culturais em diversos espaços da capital piauiense. Aristides lamenta o acontecimento e, no decorrer da entrevista, tenta lutar contra o desencanto.

Nas décadas de 1960 e 1970, um número significativo de manifestações artísticas e culturais começou a eclodir no Brasil. Na sua totalidade, o desejo era um só: alcançar uma identidade nacional, demarcar o território cultural. Em linhas gerais, que retrato pode ser traçado dessa época?

Essa pergunta abre uma ampla clareira reflexiva que nos permite mergulhar numa pluralidade de eventos e ações culturais que revelam o jogo político de mãos dadas com a cultura. Nesse caldeirão que sacudiu o Brasil no período que você destacou, posso afirmar que o Nordeste deu sua contribuição a partir de dois movimentos fundamentais. Vou falar primeiro do Movimento Armorial (1970), concretizado sob a coordenação do mestre Ariano Suassuna. Inspirado nos temas da cultura popular, Ariano articulou um projeto que dialogou com as bases da tradição nordestina e o universo ficcional medieval, abrindo as portas para o imaginário fantástico, reinventando as paisagens sonoras, literárias, imagéticas, na escavação profunda das camadas da memória popular em sintonia com o erudito. Salvo suas particularidades, posso até dizer que há um forte desdobramento histórico com o Regionalismo, dos tempos de Gilberto Freyre, Moraes Coutinho e companhia. Os armoriais foram bem recebidos pelos poderes oficiais, com apoio na universidade, nos Conselhos Federais e Estaduais e nos planos estruturantes da identidade nacional. Já nas margens desse processo, podemos dizer que o Tropicalismo (1968) nasceu para sacudir “o marasmo cultural da província”. É preciso apontar dois nomes pouco lembrados, pois temos Caetano Veloso e Gilberto Gil como figuras que ganharam maior visibilidade midiática, o que de certa forma acaba ofuscando outros personagens não conhecidos pela maioria. Nesse painel de peças importantes, os dois nomes que destaco são: Celso Marconi e Jomard Muniz de Britto. Dois agitadores que – aliados a um grupo da pesada, seja no teatro, literatura ou na música – transformaram a cena cultural de Recife nesse período, ao problematizar a noção de “cultura brasileira”, em contraposição aos cânones “sagrados” da pré e pós Tropicologia-Armorial. Foi no Jornal do Commercio (conduzido por Celso Marconi, um dos maiores críticos de cinema do Nordeste, absurdamente pouco conhecido por nós!), nos saraus poéticos, nas ações pedagógicas de inspiração paulofreireana, nas publicações e filmes super-8 que Jomard abriu fogo contra o tradicionalismo de matriz conservadora, tomando o riso ácido e a ironia refinada como campos de enfrentamento aos “imortais” e reis à sombra do poder. Para eles, o Brasil ia além da Casa Grande & Senzala, ia além das demarcações romanescas de um Nordeste idealizado pelo olhar das elites intelectuais. Uma importante reflexão que podemos extrair da força do tropicalismo pernambucano pode ser resumida no seguinte pensamento sustentado por Jomard: “O que há por trás (sem metáforas) do desbunde, do escrache, da irreverência, da gozação? Crítica ou exibicionismo? Consciência das minorias eróticas (cada vez mais ampliadas) ou inconsciência das maiorias moralistas (cada vez mais silenciosas)”?

Criado pelo professor pernambucano Jomard Muniz de Britto, o Palhaço Degolado é um símbolo? Uma metáfora? A ação de um visionário?

Faço minhas as palavras de Jomard: “É uma contribuição minha para acabar com a mistificação do intelectual, da minha mistificação, da sua mistificação… Eu continuo perguntando: Até Quando?!”.

Acredito que Jomard Muniz de Britto não se coloca como visionário ou salvacionista, pois essa “missão” não ficou para os intelectuais tropicalistas. Aqui é o Brasil em transe, o Brasil imerso e em diálogo permanente com suas contradições mais profundas, pois “é preciso e urgentíssimo que alguém escreva, para não salvar nada, nem mesmo a alegria”.

Você mencionou que o Tropicalismo, o Movimento Armorial (encabeçado por Ariano Suassuna) e a Tropicologia Gilbertiana (ligada a Gilberto Freyre) “entrecruzam-se em um campo minado, que percorre o ‘Ser’ da Cultura Nacional”. Em meio a discursos tão híbridos, fragmentados e diversos, qual a importância da produção de Jomard Muniz de Britto?

Ele explora toda a potência da película super-8 – em parceria com as performances de Alceu Valença, das texturas plásticas de Sérgio Lemos e dos happenings do Vivencial Diverciones – para problematizar as fronteiras do corpo/sexualidade, da cidade e da cultura nacional. Se eu tivesse que verbalizar a importância do cinema experimental de Jomard em poucas palavras, diria que ele nos mostrou a porosidade das supostas verdades totalizantes de uma sociedade conservadora, ainda presa aos valores senhoriais. Jomard é fundamental para dessacralizar os monumentos e revelá-los enquanto literaturas e paisagens de crise, bem como colocar o nariz de palhaço na face raivosa dos intelectuais funcionários públicos.

Seu livro soma forças ao trabalho de pesquisa e catalogação a respeito da produção cinematográfica nacional. A ênfase à cena nordestina traz à tona a importância de uma região rica em manifestações, mas que, muitas vezes, é abafada pelas serpentinas lançadas nos projetos dos grandes eixos. Você acha que uma mudança significativa tem ocorrido nesse sentido? Na sua vivência como historiador, professor e pesquisador, as produções cinematográficas do Nordeste (e seus atores) estão ganhando maior visibilidade na área acadêmica? E fora dela?

Sim. Acredito que os temas explorados pelos artistas nordestinos estão ganhando visibilidade fora do Brasil e não são vítimas da pasteurização e dos clichês típicos do cinema fast-food. Basta assistir os trabalhos do Kleber Mendonça Filho, se apaixonar por Batguano, do paraibano Tavinho Teixeira, e acompanhar a série S3tArt, produzido pela Madre Filmes, encabeçado pelo piauiense Eduardo Crispim. Muitas produções fora dos grandes circuitos estão conquistando os festivais de cinema pelo Brasil e mundo. Precisamos apenas reconhecer e aplaudir essa galera que não se rende às armadilhas do cinema de plástico, que promove a pirotecnia dos filmes com narrativa que busca atender a lógica do mercado. Tem uma turma nova que acredita na força do autoral, e é daí que surgem obras de alta qualidade estética e política. Quero lembrar que, no segundo semestre desse ano, irei lançar “Jomard Muniz de Britto e o Palhaço Degolado”.

No filme experimental “O Palhaço Degolado” (1977), Jomard Muniz de Britto veste-se de palhaço e sai pela cidade. Ele faz barulho, usa um tom ofensivo (apesar dos gracejos) e não se intimida ao atirar provocações e insinuações aos arautos da cultura pernambucana, citando Gilberto Freyre e Ariano Suassuna (este último, intelectual de quem Jomard foi pupilo e com quem romperia no futuro). Qual a importância desse trabalho no que diz respeito ao rompimento com os discursos intelectualmente aclamados?

Não diria que o tom do gesto seja “ofensivo”, mas sim carregado de uma forte ironia corrosiva que propõe uma desmistificação da figura do intelectual, como o próprio Jomard afirma, quando o assunto é esse filme. Sua importância está na construção – síntese que ele faz da cena cultural brasileira, produzindo um recorte que vai do Regionalismo de 22 às vanguardas pós-tropicalistas. A riqueza de referências e possibilidades de leitura – sobre os conflitos intelectuais e políticos em torno da configuração das identidades em trânsito no país – revela as relações entre cultura e política nos anos de chumbo e seus desdobramentos no Brasil contemporâneo. Cabe a nós compreender esse complexo painel, pois o palhaço desorganiza as linhas do tempo para o espectador fazer uma nova costura, a seu modo. O filme ainda é muito atual. Basta observar o jogo que demarca as identidades no país (principalmente no Nordeste), que ainda é regida por um discurso com raízes tradicionalistas. A nossa “carteira de identidade” oficial, desenhada nos anúncios dos eventos produzidos no Nordeste, está vinculada a uma perspectiva rural e folclorizada. Apesar da cena artística formada por agitadores das mais diversas áreas – que dialogam com as paisagens urbanas e contemporâneas -, o Nordeste ainda carrega profundas heranças deixadas pela força artístico-acadêmico-institucional dos pensadores regionalistas-armoriais. O filme não cai no simplismo das dicotomias “velho X novo”, erudito X popular, armorial X tropicalista, muito menos propaga o imperialismo das vanguardas, mas o que o palhaço ataca é o perigo dos esquemas fechados pelo poder, das dominações intelectuais na construção dos planos de cultura no Brasil, dos fetiches e culto aos mestres e das verdades totalizantes. O filme – assim como toda a escrita de Jomard – revela que a cultura brasileira vai além de uma visão senhorial de mundo, através de uma performance corporal-vocal defensora da dúvida permanente, em busca das identidades brasileiras enquanto construção, processo, trânsito e movimento. Revelando o Brasil enquanto contradição, abismo, multiculturalismo e violência que constrói e destrói, com força perene. Não estou sozinho quando afirmo que Jormard antecede o Mangue Beat. Sua contribuição está na consciência de que o Nordeste não pode ser encarado como coesão ou região a ser protegida pelos guardiões do passado, mas como estilhaços a serem descobertos por uma antropologia ficcional de nós mesmos.

Como produtor e articulador cultural piauiense, qual é a realidade nua e crua do fomento à cultura no estado?

Eu confesso que estou afastado da cena enquanto articulador audiovisual. Ano passado (2015), organizei com Tássia Araújo (curadora da Parada de Cinema, evento muito respeitado na área aqui na cidade) e Jacob Alves (um dos organizadores do Junta, um Festival Internacional de Dança incrível) a mostra Porn and Polítics e depois me dediquei totalmente à revista Acrobata, como editor. O que eu posso falar, a partir do que vejo, é que a turma está produzindo a pleno vapor. Muitas coisas interessantes estão acontecendo em Teresina. Gente publicando livro, lançando CD (várias bandas com propostas sonoras diferenciadas como a Fronteiras Blues, BR-316 e Old School Kids), editando revista, a cena dos quadrinhos cada vez mais diversa, mostras e festivais, resistência no cineclubismo, debates sobre cultura e gênero na Universidade, artistas atentos aos editais e não se intimidando com a atual situação política do país (IPHAN e o #OcupaMinc). Com o Minc vivo ou morto, os espaços culturais estão sendo vivenciados por quem está a fim de consumir cultura. Está por fora quem diz que Teresina não tem nada para fazer. Basta sair na rua e ver tudo ocupado pelo Salve Rainha!

O atual clima político, econômico e social do Brasil é de esperança ou de sinal fechado? O povo brasileiro de 2016 é substancialmente diferente do de 1977? Quem somos nós?

O Brasil já é o nosso abismo mais profundo. Vejo um horizonte nebuloso a caminho a partir de um golpe já legitimado. Não acredito nos representantes que “lutam” por nós, não temos um sistema educacional digno que estimule o professor a ensinar nossa garotada a jogar luz na escuridão. João Jardim foi duro ao retratar que o dia não está pra nascer feliz. Reproduzimos em nossas residências os costumes da Casa Grande, contratando as babás e diaristas com a pele senzalada para fazer o almoço, cuidar dos nossos filhos e limpar nossa sujeira. Assistimos passivos motoristas bêbados matando inocentes nas ruas da cidade, regidos por uma legislação de trânsito canalha, que favorece o assassino. Estamos cada vez mais sufocando e detonando as terras pertencentes aos povos indígenas e matando os negros na periferia, pois quando a polícia chega ao baile, branco sai e preto fica. Pelo agronegócio, estamos dizendo sim pela devastação dos alimentos saudáveis e camuflando o selo dos Transgênicos das nossas embalagens e descascando cada vez menos. A cultura sendo ameaçada pelos planos TEMERários. Pastores e coronéis assumindo bancadas importantes no cenário político nacional. Ascensão corrosiva da extrema direita, que está de volta com os bolsomitos e os ataques aos gays, negr@s e os corpos em TRANSito. Olha, não sei não. Cada dia que passa, o mal estar que rege o país só transforma minha função como educador num instrumento de luta, que vai contra a escola sem partido e busca deseducar a galera jovem a entender que, se as coisas continuarem assim, não tem 1977, nem 1985, nem 2016! Estamos correndo um risco sério de ficar com 64! Todos os dias eu vou acreditar que, se minha profissão for encarada como uma guerrilha contra a conjuntura que nos aperta, tudo que eu disse acima não fará o menor sentido.

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