Questionaram no facebook por que não se realizam rolezinhos nas bibliotecas públicas brasileiras, e essa é uma excelente questão. O que costumamos encontrar é a ideia de que as bibliotecas existem para oferecer às pessoas das classes baixas uma oportunidade, uma saída, e isso é algo benéfico que o sistema pode oferecer. Mas e se a biblioteca pública como conhecemos foi desenhada em considerável parcela para prevenir consciência e revolta de classes, podemos medir seu “sucesso” pela ausência de luta aberta de classes? E se a biblioteca é na verdade antirrolezinho, assim como é anti-inovação, anti-internet, antibarulho, antitantas outras coisas?

Porque quando verificamos a retórica do por que as bibliotecas públicas se tornaram o que são, tratava-se de uma iniciativa das classes média e alta de expor publicamente seu status, com as primeiras bibliotecas públicas funcionando com sistema de subscrição, aceitando como usuários apenas gente com dinheiro suficiente para participar. Uma espécie de shopping, onde o selo de entrada é o limite do cartão de crédito. E eventualmente com a proposta de enriquecer e “melhorar” a classe trabalhadora, majoritariamente não letrada, de maneira que os trabalhadores tivessem com que se ocupar em seu tempo livre além de perceber quanto o novo sistema econômico era prejudicial a eles. Uma espécie de BBB14.

Ou seja, qual é o papel das bibliotecas públicas dentro de um grande sistema social, político e econômico que foi moldado para a desigualdade e opressão? Se as bibliotecas públicas nascem a partir dessa estrutura, que traduz uma ideologia de um mercado liberal individualizado que pode servir como uma metáfora para todas as formas de interação humana, são elas cúmplices d/nesse sistema?

Essa noção de cumplicidade ilustra uma abordagem Gramsciana sobre o assunto:  as bibliotecas cooptam as classes mais baixas, retirando sua consciência de classes. No pensamento Gramsciano um sistema social-político-econômico exerce influência inconsciente. O fato de ocorrer sem ser percebido, compreendido e assumido pela maioria é prova de sua efetividade. O primeiro passo para desafiar uma superestrutura hegemônica como essa é perceber que ela existe.

Claro que dizer que as bibliotecas são ruins porque elas foram concebidas para prevenir revolta de classes é uma falácia óbvia tanto quanto dizer que são boas porque surgem a partir de um conjunto particular de valores. Não estamos falando aqui de uma apropriação oportunista dos rolezinhos.

Porém, vemos poucas pessoas tomando uma abordagem crítica e sincera ao analisar como a biblioteca, como instituição, é na verdade opressiva e concebida para criar e perpetuar a desigualdade. É intrigante que uma profissão que constrói conhecimento oferece pouco a dizer sobre a construção do conhecimento.

De uma maneira ou outra, bibliotecas não servem como deus ex machina ou bode expiatório para resolver todos os problemas de classe, mas funcionam como uma bela representação do sistema social-político-econômico prevalecente.

Para as bibliotecas, existem algumas maneiras de combater o neoliberalismo e propor alternativas. Primeiro, as escolas de biblioteconomia podem oferecer disciplinas que tornam os futuros profissionais atentos às questões liberais que irão encontrar em seus postos de trabalho. Quando o estado e o mercado falham ao oferecer abrigo, cuidados infantis e centros de amparo aos desempregados, essas atividades e outras acabam sendo absorvidas pelas bibliotecas públicas (veja como funciona as bibliotecas parque no Rio de Janeiro e o CCSP).

O currículo da biblioteconomia deveria gastar mais tempo discutindo esses desafios para os profissionais atuando nas bibliotecas. Disciplinas voltadas às bibliotecas acadêmicas deveriam discutir as políticas econômicas da educação superior e do mercado editorial, e como elas influenciam as bibliotecas e sua gestão. Segundo, as entidades de classes, podem reavaliar suas agendas, mudando o discurso do retorno aos investimentos e métricas de eficiência para o discurso sobre valores da biblioteca para a sociedade.

Se as bibliotecas não são a causa dos rolezinhos, então que ao menos não abracem uma ética do antirrolezinho. Do contrário, estão apenas reforçando a ideia de que são o que não deveriam ser.

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