“Foi publicado um decreto proibindo que se imprima qualquer livro sem exame prévio. A imprensa está sendo supervisionada pela coroa, os impressores receberam uma notificação para não imprimir coisa alguma sem a devida fiscalização. A medida severa se enquadra também em bibliotecas particulares de falecidos e livrarias abertas ao público. Livros que constam no Index, o total de 495 títulos, são extremamente proibidos de serem comercializados”. Trecho retirado e adaptado do livro “Inquisição”, de Anita Novinsky, páginas 52-53.

O trecho retrata o período inquisitorial em Portugal em meados do século XVI, mas retirando as datas e palavras-chave da época, o texto poderia ser lido no tempo atual e se encaixado à conjuntura que vivemos. A Inquisição em Portugal durou cerca de 3 séculos, do XVI ao XIX. Foi um Tribunal político-religioso que perseguia pessoas específicas, fiéis que não seguiam os dogmas estipulados da Igreja Católica (hereges, bruxas etc.). O texto descreve um local cerceado no nível da imprensa e da literatura, ambiente muito próximo ao que pode se tornar o Brasil com a atitude tão censória do ministro da economia, Paulo Guedes, de propor a taxação de livros a 12%.

Uma das principais armas de regimes totalitários é a censura, a consequente remoção da circulação pública da informação. Por regime totalitário se caracteriza o controle total da vida pública e privada da população. O aumento do preço do livro o torna inviável para as classes mais pobres. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, divulgada recentemente, as classes C, D e E representam cerca de 27 milhões de brasileiros leitores. Em decorrência, a medida inviabiliza o acesso ao direito à leitura, à literatura e ao livro, à cultura e à educação!

Biblioteca do Italo de Salvador. Foto: Vitória Dias

O argumento do ministro para esta taxação é de que o livro é um produto considerado de luxo, consumido pela elite e que o governo gasta muito dinheiro com livros de graça aos pobres. Atualmente, o livro é isento da tributação do PIS e Cofins pela lei 10.865 de 2004 e protegido pela Constituição de pagar impostos (artigo 150). Com a reforma tributária proposta pelo governo, seria substituído pela Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços (CBS), o que acabaria com a isenção dos referidos tributos.

Da mesma forma que o ministro da economia é preconceituoso com o que diz e para quem ele diz que o livro se destina, e assim, a quem seria merecedor da cultura, há um pensamento encrustado no brasileiro de auto desvalorização. O presidente da República também não fica para trás com suas falas grotescas (demonstrando um óbvio não conhecimento daquilo que diz), como por exemplo, quando disse em janeiro que os livros didáticos precisavam ser suavizados, que eram amontoados com muitas coisas escritas.

E mesmo com um governo que não valorize a leitura, o Brasil é o 8° país que mais compra livros, segundo levantamento feito pelo site de e-commerce Picodi.com sobre o ato de ler dos brasileiros e como essa cultura literária é consumida. O trabalho de bibliotecas pelo Brasil inteiro – comunitárias, públicas e escolares – de editoras e livrarias, busca fazer chegar o livro à casa dos brasileiros leitores, para que seja consumido, emprestado ou comprado, para que o direito humano à leitura e à literatura prevaleça.

A proposta do governo é ruim para todo mundo: para o consumidor, que compra o livro por inúmeras razões, como instrumento educacional, crescimento intelectual, cultura, lazer, melhorar a qualidade de vida etc. Também para as empresas, com o aumento do custo da produção e a redução das vendas, menos retorno, menos lucro.

Não fazendo sentido os argumentos do ministro da economia, o que sobra é uma tentativa vil e cruel de cercear obras literárias. Não é benéfico a um regime totalitarista que o povo seja crítico, que tenha pensamentos próprios e se levante quando não concordar com o que o seu mandante ordena. Assim, para chegar no ambiente favorável de uma população não pensante é melhor tirar dela o instrumento que a permite pensar.

Se queimassem os livros queimados como em Fahrenheit 451 (Ray Bradbury, 1956) daria muito na cara; se os livros fossem modificados como em 1984 (George Orwell, 1949) daria muito trabalho e seria necessária uma comissão específica para este fim. Então, a forma mais rápida e dolorosa é taxar os livros, retirando o acesso a uma grande parcela da população, com potencial de se tornar leitora e em consequência mais consciente e crítica.

Rede Releitura de Pernambuco. Foto: Tarcísio Camelo

Em 1933, em toda a Alemanha, em praças públicas (principalmente das cidades universitárias) houve uma queima de livros, chamada pelos nazistas de “limpeza” da literatura. Uma óbvia perseguição aos intelectuais que não concordavam com o governo. A destruição atingiu os livros que eram críticos ou considerados desviantes do pensamento do governo de Hitler. É de se temer que o governo brasileiro de Bolsonaro tente algo semelhante.

Na Inquisição, os livros censurados eram aqueles que conduziam o seu leitor a atos heréticos, que iriam contra os ensinamentos da coroa e da instituição religiosa mandante. O pensamento tinha que ser reto e seguir os preceitos estipulados pela nobreza e o clero, nível básico de entendimento, é claro. Enquanto no Brasil atual há uma tentativa visível e enorme de esquecer a História e o passado, que não houve uma Ditadura Civil Militar por mais de 20 anos a partir da década de 1960, que não houver presos políticos, tortura de pessoas que iam contra o regime, de pessoas que ainda não se sabem onde estão – que nunca foram encontrados seus corpos, de exilados. O passado de sangue do Brasil ainda é homenageado em falas e atos em locais onde deveria morar a democracia.

O que a censura tem a ver com os livros é justamente o que tentamos evitar. Se nós somos os próximos, e em nós, caracteriza todo o ramo livreiro, literário, bibliotecas – em todos os níveis – e educacional, é uma luta mais densa do que realmente deveria ser. Porque para alguns, infelizmente, alguns direitos como ler, escrever, ter conhecimento intelectual, não é óbvio, e têm que ser conquistado dia após dia. A luta densa é para que não seja ainda pior, que a censura não passe para o conteúdo, porque pode ser o próximo item. E vamos nos aproximando cada vez mais de um período inquisitorial que não foi benéfico para a população. A teoria é que é tão “fácil” ter esses meios de cerceamento no Brasil porque eles não foram devidamente extintos depois que a Ditadura acabou.

Estamos na era das Fakes News, e é improvável que ao menos, uma vez, alguém não tenha recebido uma notícia falsa pelas redes sociais e ter acreditado nela. Um estudo feito pela empresa de soluções em tecnologia Kapersky, (em parceria com a empresa de pesquisa CORPA, na América Latina) mostrou que 62% dos brasileiros não sabem reconhecer uma notícia falsa. É um resultado preocupante, visto que as pessoas estão tendo menos criticidade nas informações que recebem, estão apenas compartilhando sem terem certeza sobre a veracidade da notícia. O caso é saber a quem isso privilegia, um país não leitor é benéfico a quem?!

A restrição do acesso ao livro atinge diretamente o nível educacional. Aqueles privados dos meios e condições de ter o livro não irão estudar devidamente nos vestibulares; não se prepararão efetivamente para concursos – se houver; dependerão sempre de alguém que dê a resposta, ao invés de conseguir pensar por si próprios. O livro traz conhecimento e conhecimento é poder. É a retirada deste poder que preocupa.

É visível que não há uma boa liderança nas finanças brasileiras, o país é rico em matérias-primas e mesmo assim, há uma gigantesca desigualdade econômica e social. O governo tenta com esta reforma tributária arrecadar fundos de qualquer modo e em qualquer lugar dada a situação fiscal e a crise financeira, alavancada com a pandemia do coronavírus. Mas não há um plano para taxação para grandes fortunas que esteja sendo proposto pelo governo, nem aumento de imposto sobre produtos verdadeiramente de elite, como iates, nem cobrança de dívidas de instituições religiosas – que na verdade, são perdoadas – ou redução do poder dos bancos.

Se percebe, então, o plano estratégico e o que ele significa. O governo é para uma elite que anda de jatinho particular e não tem taxas a mais pelo serviço. Enquanto uma pessoa da classe D terá que escolher entre comprar arroz (com o preço exorbitante) ou comprar um livro, na tentativa de um futuro melhor.

Ainda não propuseram uma comissão específica para que os livros sejam alterados, também não há um exército treinado para queimar os livros nas casas e bibliotecas, mas isto já foi escrito e esses futuros distópicos se tornam cada vez mais presentes e possíveis. Isso dá medo, visto a conjuntura política do país. É necessário barrar a taxação e alavancar o Brasil como um país leitor. É necessário para que os próximos governos (a esperança é a última que morre) não sejam estúpidos o bastante para mexerem num vespeiro. É necessário aumentar a visibilidade e a propaganda da leitura como um direito humano. Livro é futuro, temos que ter o direito de continuar a pensar.

*Até o fim da escrita deste artigo a reforma tributária ainda não tinha data para ser votada.

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