Não sei como você acordou neste ano novo, mas eu acordei com a sensação de que não dormi. Como se tivesse passado a noite em claro em uma noite escura sem aquela sensação de renovação que uma boa noite de sono costuma promover. Uma metáfora acerca dos tempos que seguimos vivendo?

Despertei com vontade de literatura, contos de fadas, com elfos, gnomos, florestas encantadas, gato de Alice. E lembrei da célebre passagem no País das Maravilhas em que Alice pergunta para o Gato:

“Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?”

“Isso depende bastante de onde você quer chegar”, disse o Gato.

“O lugar não importa muito…”, disse Alice.

“Então não importa o caminho que você vai tomar”, disse o Gato

Por que? Tomo emprestada as palavras do neurocientista António Damásio:

A vida é uma coisa venerável, confusa, efusiva. A grande arte nos dá isso e a grande literatura dá isso extraordinariamente. Quando não se inclui esse componente de confusão, efusividade, aquilo que pode ser qualificável de bom ou de mau, perde-se uma grande parte do que é a vida”.

Porque a literatura é o lugar do acolhimento e do encontro, do assombro, da desconformidade, de pouso e repouso, de encanto e desencanto, recato e desacato, tudo o que somos, tudo o que nos constitui:

“A literatura é extraordinariamente útil porque é uma entrada muito rica na mente, uma entrada que utiliza a vida subjetiva, os sentimentos”.

Precisamos, como espécie, temos a ela direito, como cidadãs e cidadãos neste “planeta pálido ponto azul que flutua no universo”.

A gente não se conhece, mas imagino que se você está aqui por estas bandas da Biblioo lendo este texto é quase certo que você, como eu, quer chegar num mundo onde há dignidade e generosidade para todas as formas de vida, onde não há desigualdade nem injustiça ou pobreza. Um mundo construído por todo mundo para todo o mundo.

E como o mundo é grande e o objetivo é maior ainda, acordei com a convicção fortalecida de que a mudança que a gente quer é conquistada no miudinho das nossas ações, baseadas numa filosofia de vida que seja, ela mesma, a expressão de onde e como queremos chegar: ubuntu.

E quem nos explica o que é ubuntu, uma antiga palavra africana que tem origem na língua Zulu (pertencente ao grupo linguístico bantu) é Nelson Mandela:

“O ubuntu não significa que uma pessoa não se preocupe com o seu progresso pessoal. A questão é: o meu progresso pessoal está à serviço do progresso da minha comunidade? Isso é o mais importante na vida. E se uma pessoa conseguir viver assim, terá atingido algo muito importante e admirável”.

No momento em que escrevo este artigo leio um post de Valter Hugo Mãe no Instagram, referindo-se aos 75 anos de libertação de prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau: “o horror está vivo”.

A frase cabe também ao holocausto vivido por exilados e refugiados em busca de um lar em qualquer parte do mundo hoje, agora. Gente espoliada e renegada, submetida, escravizada — essas e tantas outras formas de promover o horror e danos irreversíveis à vida.

Acordei em 2020 pensando na frase do escritor William Faulkner, claro, muitos dias antes de ler a frase do Mãe, que a corrobora:

“O que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo

no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada,

mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.”

Acordei em 2020 mexida com minha sensação de insônia e remexendo em papéis antigos. Foi assim que encontrei esta imagem que me banhou em ternura pelo cuidado do meu pai em preservá-la e por tudo que o gesto dele simboliza: cuidado, presença, valorização da minha jornada como escritora e leitora.

“O primeiro dia de aula da minha Christine”. Foto: arquivo pessoal / Christine Castilho Fontelles

Volto para ubuntu – lê-se ubúntu, uma proparoxítona – quando penso que além de mim toda a gente precisa e tem direito à fabulação, à ficção, ao encontro com toda a história vivida e a viver pela humanidade que está contida na literatura. Seja pela remetência ao fato de que somos parte de um grande fio da história que nos constituiu até aqui, seja porque devemos ser, teimar, insistir em ser pessoas que não vivem por e para si mesmas, mas em comunhão estreita com todos os seres humanos.

E esta ideia reforça a minha ideia, que não é só minha e nem é ideia minha, de que a biblioteca na escola é esse lugar de direito a ser conquistado para todas e todos por meio de uma rede tecida por muitas mãos: educadoras(es), famílias, gestoras (es) públicas (os), parlamentares, estudantes, eu e você.

Foi nessa “pegada” que vibrei com a ideia de biblioteca e formação leitora descrita por António Novoa, professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e reitor honorário da mesma universidade, em entrevista para o grande Chico de Paula para a Biblioo.  Minha escola ideal é a escola onde se entra pela biblioteca”.

Uma biblioteca e formação de cultura leitora feita a várias mãos, pois nem uma coisa e nem outra tem a ver com corporativismo, com a missão desta ou daquela pessoa, desta ou daquela instituição. Ubuntu! Somos todas e todos por todas e todos. Não dá para ser de outra forma.

Se por um lado a universalização de bibliotecas em escolas é para ontem, a formação de cultura leitora é obra de cuidado, preparo, apuro, tempo. Fica o convite para você assistir à entrevista com Novoa.

Ainda que você não encontre ineditismo na sua fala, há clareza e contundência, há convicção, há uma alegria contagiante típica de quem sabe bem do que está falando, tem estrada, tem história. Tem sentido.

Então eu imagino nossa biblioteca como nossa materialização da filosofia do ubuntu, porque o agir ubuntu pressupõe um fazer coletivo pelo coletivo. Coisa mais bonita e potente, da edificação das paredes à ideia de cada ação contida no fazer da biblioteca, que dá e confere sentido à jornada e às múltiplas interações inerentes e necessárias para a formação leitora.

Uma formação leitora entendida como um processo fundante e fundamental para nosso processo de humanização, no sentido utópico da palavra, no sentido expresso neste manifesto de um amigo muito querido, o escritor Daniel Munduruku:

“Ah, como tenho o desejo de construir uma realidade em que possamos,

de fato, sermos mais por sermos Um!

Alguém dirá que é utopia. Dirá bem, dirá certo. É.

O mais legal é saber que ela é possível. Eu a vivi. Eu vim de lá.

É o que quero oferecer aqui. Esse é o bem viver que aprendi de minha gente.

É ser Presente. É ser parte. É pertencer. É me importar com meu lugar.

É me comprometer com a minha realidade. É não ficar indiferente.

É não aceitar que digam que não posso fazer. É ser livre.

É entender que minha realização só é possível quando o outro também se realiza.

É ser solidário, solícito e coletivo.

Enfim, é Ser.”

Acordei em 2020 sem esquecer de seguir persistindo: a Lei 12.244/10 determinava que todas as escolas do Brasil deveriam ter uma biblioteca até este ano, 2020.  O verbo já está no passado porque, claro(!), com mais de 50% das escolas públicas brasileiras sem biblioteca, não será este o ano em que este direito estará assegurado.

De um total de 141.298 escolas públicas (urbanas e rurais), 31% indica ter biblioteca e 21% indica ter sala de leitura, segundo informa o site www.qedu.org.br a partir de dados do Censo Mec 2018. Há um projeto de lei em tramitação, o 9.484/18 que, entre outros aspectos, estende o prazo da universalização para 2024.

Teci alguns comentários sobre o PL 9484 no artigo intitulado “Porque ainda acredito na importância da biblioteca e na posse da palavra”. O mais importante, portanto, é que hoje já é futuro e o futuro das bibliotecas em escolas depende da ação concreta de cada uma/um de nós hoje.

Bora olhar no site do seu município e do seu estado se bibliotecas em escolas estão contempladas no orçamento de 2020, conversar com a(o) sua(seu) candidata(o), ter em mente que este é o ano de eleições municipais e deve constar no plano de governo de suas(seus) candidatas(os) ações concretas para a universalização de bibliotecas em escolas. Lembre, ubuntu: SOU QUEM SOU PORQUE SOMOS TODOS NÓS!

Shipat oboré!

*”Fica bem, amigo”, na língua munduruku

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