1.
“O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado”. Essa óbvia constatação era anunciada por Paulo Emílio Sales Gomes no final dos anos 1960. O país atravessava, naquele momento, um estado de exceção dos mais truculentos, que fora escancarado com o AI-5, em dezembro de 1968. A Cinemateca Brasileira, fundada em 1956, já sofrera com a destruição causada por dois incêndios, no momento em que o crítico de cinema retomava o óbvio “descaso pelo que existiu”. Esse tradicional descaso parecia explicar, como então sugeriu Paulo Emílio, “a impossibilidade de se criar uma cinemateca”. Descaso que certamente, no entanto, se torna mais agudo sob uma ditadura militar em pleno terrorismo.
Paulo Emílio foi um dos mais obstinados militantes da cultura cinematográfica no Brasil. Essa militância foi reiterada no duradouro empenho que o crítico dedicou à criação e à manutenção da Cinemateca Brasileira. Em meados da década de 1940, tomou parte no grupo da revista Clima, considerada marco da moderna crítica cultural no país, e nela movimentou algumas das noções necessárias para um entendimento menos superficial da produção cinematográfica. No início dessa mesma década, Paulo Emílio fora um dos fundadores do primeiro Clube de Cinema de São Paulo, que congregava gente para quem o fenômeno cinematográfico era “mais do que simples divertimento” (como registra um dos boletins do Clube).
Juntava-se ao famigerado “descaso pelo que existiu” a desconfiança de governos autoritários, como o do Estado Novo, que chegou a proibir as sessões do Clube de Cinema. Como ironizava Paulo Emílio, “essa coisa de intelectuais reunidos para ver filmes antigos só pode ser coisa de subversivos”. Mas a década seguinte, a de 1950, seria momento propício para o surgimento de instituições culturais em São Paulo, como a Bienal Internacional de Arte. E será nesse momento de maior movimentação cultural que a militância por uma compreensão ampliada da cultura cinematográfica irá lograr resultados palpáveis, como a criação da Cinemateca Brasileira em 1956.
2.
No dia 29 de julho passado, uma das dependências da Cinemateca Brasileira, na Zona Oeste de São Paulo (Vila Leopoldina), foi atingida pelas chamas de um incêndio há muito anunciado. Afinal, a instituição se encontrava em abandono absoluto desde agosto de 2020, quando a Secretaria Especial da Cultura exigiu que a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), responsável pela gestão da Cinemateca, entregasse as chaves de todas as dependências da instituição. Era o desfecho da vertiginosa negligência que fora decretada pelo governo Bolsonaro, que determinou a retomada da Cinemateca pela União e a colocou em situação de abandono completo.
O Brasil ainda se interessa pouco pelo próprio passado. E essa constatação, ainda hoje, nos aproxima temerariamente da impossibilidade de se manter uma cinemateca. Esse infortúnio historicamente tão demarcado é ainda um dos grandes desafios para a viabilização da Cinemateca Brasileira, os quais se juntam a outros mais escandalosos. Entre estes, podemos perceber com nitidez os que foram implantados pelo atual governo: o desprezo absurdo pela perspectiva histórica, típica de negacionistas, que pretendem o apagamento de nossa história recente (negando, por exemplo, que tenha ocorrido uma ditadura no Brasil entre 1964 e 1988); a concepção utilitária e convencional da produção artístico-cultural, que despreza tudo o que não possa ser convertido em lucro; e o xucro anti-intelectualismo ostentado pela mentalidade fascista que se instaurou no governo.
3.
Os momentos decisivos da criação da Cinemateca Brasileira, assim como os momentos cruciais de sua manutenção, estiveram, portanto, vinculados à compreensão de pelo menos três aspectos fundamentais. O primeiro deles é a compreensão efetiva da relevância da cultura cinematográfica para a constituição de uma memória artística, cultural e histórica. A formação desta cultura cinematográfica, que se estrutura na articulação com outras tradições artísticas do país (como a literária, a teatral, a das artes plásticas etc.) é elemento fundamental para nossa vitalidade cultural. Naquele mesmo ano da fundação da Cinemateca, Paulo Emílio lembrava que “não se faz bom cinema sem cultura cinematográfica e uma cultura viva exige simultaneamente o conhecimento do passado, a compreensão do presente e uma perspectiva para o futuro”.
O segundo dos aspectos fundamentais da militância em favor de uma cinemateca era a compreensão de que tal projeto cultural não podia se limitar à dimensão técnica de preservação de filmes. Uma das funções primordiais da Cinemateca Brasileira estaria na proposição de um projeto político-pedagógico de amplo alcance social, que desse às atividades de difusão o firme caráter de democratização do acesso à cultura. O “grupo da cinemateca”, em que Paulo Emílio era protagonista, militava em torno de um projeto sistêmico que favorecesse o acesso democrático ao patrimônio cultural e artístico do país, efetivando algumas das melhores (e vagas) pretensões democratizantes que haviam sido lançadas pela primeira geração modernista.
O terceiro dos aspectos fundamentais foi apontado com nitidez por Paulo Emílio: “Uma cinemateca só pode existir quando fortemente apoiada pelos poderes públicos”. E esse foi o aspecto que certamente representou a dificuldade maior encontrada pela militância em favor da Cinemateca Brasileira. Os altos investimentos exigidos para o pleno funcionamento de uma instituição como essa deveriam ser custeados pelos poderes públicos (municipal, estadual e federal), a quem caberia garantir o acesso da população à produção cultural do país. Sem a inclusão da cultura cinematográfica nesse projeto governamental, a promoção do acesso a bens culturais deixaria muito a desejar.
A militância de Paulo Emílio em favor da formação de uma cultura cinematográfica, que não seria possível sem uma cinemateca, partia do princípio de que “não há cultura sem perspectiva histórica”. Na busca pelas condições para a realização desse projeto, era necessário ao menos em parte superar o “descaso pelo que existiu”. Para isso, o projeto político-pedagógico da Cinemateca Brasileira previa a criação de parcerias com cursos de cinema, bibliotecas, escolas, cineclubes, universidades… Não eram poucos os desafios e as dificuldades, que exigiam de Paulo Emílio e de seus colegas inteligência, ânimo e teimosia. Ainda no final dos anos 1950, diante das pessoas que estranhavam essa obstinação, o crítico militante esclarecia: “Na realidade a nossa ação é animada pela certeza objetiva de que está na hora de existir uma cinemateca no Brasil e pela convicção de que ela existirá hoje ou amanhã, diretamente ou não ligada ao nosso empenho”.