“O medo de voltar para casa à noite, os homens que se esfregam nojentos no caminho de ida e volta da escola, a falta de esperança e o tormento de saber que nada é justo e pouco é certo, e que estamos destruindo o futuro e que a maldade anda sempre aqui por perto. A violência e a injustiça que existe contra todas as meninas e mulheres, um mundo onde a verdade é o avesso e a alegria já não tem mais endereço”.

(Clarisse – Legião Urbana).

O medo de voltar para casa à noite sozinha, o assédio cotidiano, as piadas e cantadas grosseiras, os olhares, a cobiça, os vagões femininos dos trens e metrôs são partes da violência cotidiana que todas as mulheres têm de enfrentar na rotina diária das cidades. O recente caso de estupro coletivo contra uma jovem de 16 anos no Rio de Janeiro é mais uma prova da crueldade da cultura do estupro e de alguns homens que acham que a mulher é um “objeto para usar e jogar fora depois de ter prazer”.

Os dados do Instituto de Segurança do Rio revelam que nos primeiros quatro meses deste ano, o Rio de Janeiro registrou 1,5 mil casos de estupro. O professor e jornalista, Fabio Vasconcellos, ao tabular esses dados em artigo no O Globo, demonstrou que “nos primeiros quatro meses deste ano foram 1.535 casos. Em média, foram 385 registros por mês. A cada dia, foram identificados 13 casos no Estado do Rio nesses primeiros meses de 2016”. No interior do estado, a realidade é ainda pior os casos de estupro tiveram um aumento de 69%.

Sabemos que esse percentual pode ser ainda maior se levarmos em conta os casos que não são registrados devido ao fato de que muitas vítimas deixam de registrar por medo de represálias ou então pelo constrangimento.

O estupro institucionalizado

A investigação deste caso de estupro em uma comunidade da Zona Oeste do Rio de Janeiro sofreu uma reviravolta após o afastamento de Alessando Thiers, delegado titular da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI). Em seu lugar assumiu Cristiana Bento da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente (DCAV).

O afastamento de Thiers do caso se deu pela forma como o advogado recebeu a vítima, com fotos e perguntas que acuava e constrangia a jovem. Em entrevista a repórter Renata Ceribelli exibida no Fantástico à vítima revelou que se sentiu desrespeitada na delegacia quando o advogado a culpou e descreveu como foi realizado o procedimento para a coleta do seu depoimento. “Eu não me senti á vontade em nenhum momento […] tinham três homens dentro de uma sala de vidro, todo mundo que passava via. Ele [o advogado] botou na mesa as fotos e vídeo expôs e falou: ‘me conta aí’ […] não perguntou se eu estava bem, se eu tinha proteção, como eu estava me sentindo”, ressaltou a vítima.

Além de enfrentar o trauma pela violência de um estupro coletivo, a jovem é humilhada e desrespeitada na delegacia. Lugar esse que deveria acolher e estar preparado para conduzir e dar direcionamento a um caso dessa complexidade. Esse despreparo do poder público também é uma violência contra as mulheres e contribui para que outros casos não sejam denunciados.

Ataque aos direitos da mulher

Está em curso no Brasil um ataque as recentes conquistas e garantias em prol dos direitos da mulher através de medidas retrógradas que estão sendo adotadas por parlamentares conservadores que integram a bancada evangélica. Uma das iniciativas que representam o retrocesso é o Projeto de Lei 5069/2013, de autoria do deputado afastado, Eduardo Cunha, que altera o procedimento de assistência a vítimas de violência sexual e a definição de estupro.

Segundo o PL 5069 só será considerado estupro os casos que resultarem em danos físicos ou psicológicos à vítima. Essa proposta tem como principal objetivo impedir o aborto no Brasil inclusive em casos de estupro, que já é permitido por lei. Atualmente, a vítima de violência recebe assistência na rede pública do Sistema Único de Saúde (SUS) com coquetel anti-HIV, pílula do dia seguinte, recebe informações sobre os direitos legais e todos os serviços sanitários disponíveis a ela. Se o projeto for aprovado, a vítima só receberá esses atendimentos médicos após registrar a queixa na delegacia e passar por exame de corpo de delito.

A proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJC) no dia 21 de outubro de 2015 e ainda não tem data para ser votada no plenário. O projeto de lei vem sendo alvo de repúdio por grupos feministas e diversos setores da sociedade que através de atos e manifestações estão resistindo contra esse retrocesso.

A conjuntura política atual também não é favorável a representatividade feminina, o presidente interino Michel Temer já sinalizou que as mulheres não terão vez em seu governo ao escolher um ministério exclusivamente masculino e ao extinguir o então Ministério das Mulheres.

Tentando justificar o injustificável

Com a repercussão nas redes sociais do caso de estupro coletivo contra jovem no Rio ficou nítido que a sociedade brasileira ainda reproduz práticas e discursos da sociedade patriarcal, em que a violência contra a mulher é tão corriqueira que muitos não a identificam e procuram justificar.

No dia 28 de maio de 2016 o Jornal Meia Hora divulgou em sua página no Facebook a capa do dia. Em um fundo preto letras garrafais em vermelho com o dizer: “O Rio exige a prisão dos 33 monstros”. O mais surpreendente nesse caso não foi nem a capa em si, mas os comentários na postagem que tentavam justificar tal atrocidade. Destaco alguns trechos: “Isso foi um bacanal muito diferente de um estupro”; “Essa menina frequenta morros e favelas desde os seus 11 anos de idade”; “Estupro é quando pegam uma criança indefesa, ela sabia muito bem o que estava fazendo”; “O Rio também deve pedir a prisão dela”; “Foi uma orgia por livre e espontânea vontade”….

Além de enfrentar todo o trauma perante o estupro, a jovem vítima, também foi criminalizada nas redes sociais através de montagens de fotos com armas, divulgação de vídeos, áudios ilegais atribuídos a ela e outros crimes cibernéticos. Tudo com interesse de justificar tal atrocidade e condenar a jovem pelo seu suposto estilo de vida.

Em um contexto em que o Ministro da Educação recebe e escuta as propostas de um individuo que afirmou em um canal de TV aberta que já estuprou, precisamos combater e lutar contra a cultura do estupro, afinal de contas a escola é o lugar onde temos que começar a ensinar que qualquer violência contra a mulher é um ato inaceitável e injustificável.

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