a liberdade tem uma cor verde verdeverdoso um ectoplasma verde fluoresce do cobre iluminado

(Haroldo de Campos, Galáxias)

 

Lembro bem de quando menino um cheiro estranho me acordava madrugada a dentro. Era um aroma agridoce que saía de mim sem que eu tivesse domínio, como se a alma vazasse feroz e lindamente para o fora que é a vida.

Esse fora que é onde a gente acha que sabe ser. Mas não sabe tanto assim. Viver é levantar hipóteses aqui e derrubá-las lá. Eu não compreendia muito bem porque aquilo poderia parecer tão nojento, mas adorava. Sim. Só suspeitava ser aquele cheiro minhas entranhas escapulindo, dizendo que a vida estava começando a querer ser vivida em toda a sua pulsão.

E eu precisava agir, concordar, não como o cordeiro manso que sabe que vai ser devorado pelo lobo, mas com o próprio lobo que sabe que precisa se alimentar do cordeiro para viver. Eu não sabia ser Lobo, como não sabia ser cordeiro. Era apenas menino, cuja alma buscava acariciar não sei o quê para existir mais dignamente.

Tenho um pouco de receio desse texto. Ele vem num fluxo, como coisa que se pensa e só precisa do humano a modo de cavalo de santo. Coisas do perigo que nos molda. O cheiro do líquido viscoso que me escapava me inundava em pensamentos que iam do amarelo-fogo até o vermelho-púrpura. Você já pensou ou sonhou em cores? Experimente para ver como as cores do pensamento são mais fortes e cristalinas do que as desse lado de cá.

Eu queria sentir aquilo que era expelido a contragosto. Tocava no líquido, brincava com os dedos, cheirava cheirava… um dia provei, e o gosto até que não era tão ruim. Era gosto do meu interior. Um dos tantos sabores que eu deveria ter. Talvez, se eu fosse mais leitor naquela época, poderia até suspeitar que a ambrosia dos deuses do Olimpo tinha aquela consistência, quase amarela, quase pastosa, mas ainda não.

Como meu pensamento era somente térreo, associava aquilo à gosma de uma lesma, que pode até ser nojenta para uns, mas deixa um rastro prateado nos mapas vagarosos que ela elabora por aí. Eu era uma lesma gosmenta, à procura de traçar cartografias do desejo. Mas isso eu ainda não sabia de todo. Que a gente é feito de desejo. E que ele explode em algum momento sem a gente querer. É natural. É próprio de bicho. Meu pensamento, sem querer, me aproximava do bicho em estado bruto que eu era.

Será que se eu tocar ali e friccionar para cima e para baixo é pecado? Será que Deus está vendo que me provo, me toco, me experimento? Será que o olho de Deus é torto? Será que Ele faz vista grossa para meu desejo? É ruim ser humano quando a gente suspeita que haja alguma coisa que nos vigia o tempo todo e nunca nos deixa ser sozinho.

É estranho experimentar essas coisas que fazem o sangue correr mais forte quando parece que há um vigia acima de nós. Mas eu me toquei. Eu queria ser como a fonte do chafariz que jorra jatos alvíssimos de água para embelezamento da praça. No meu caso, eu seria o meu próprio embelezamento, a fonte, o jato luminescente.

E foi então que descobri que podia me virar pelo avesso sempre que quisesse. Que não precisava dormir para isso. Descobri que a mão é poderosa quando aceita ser controlada pelo ritmo do pensamento. Descobri que isso é a música do prazer solitário. Acaso existirá um prazer que não é solitário? Sei que podem me crucificar por isso dizendo que só um sujeito muito egoísta é que pode dizer essas coisas.

Mas veja bem. Existe coisa mais solitária do que o ato de escrever e de ler? Um se isola do mundo para sentir o prazer da escrita; o outro se isola do mundo para absorver o que o outro escreveu. Essas duas ações são mais solitárias do que solidárias. Se há solidariedade aí isso significa que dois indivíduos dialogam em espaço-tempo diferentes pela palavra expelida e guardada num livro.

Ler é experimentar essa solidão. Quem sabe, haverá um jorro. Como a polução noturna de que falava no início. Ler é experimentar o gozo da solidão. E ainda que você faça da leitura um momento de partilha, você só será leitor de fato se se permitir abandonar-se.

Acho que está na hora de concluir essa crônica, porque o assunto mudou. Essa minha mania de confundir tudo. De não ser circular, redondo, como a geometria da natureza. Eu falava primeiro do gozo inconsciente e do gozo premeditado. Depois caí no gozo estético.

Será que tudo é uma coisa só? Experimentar fazer a alma sair do corpo num projeto de libertação, ainda que momentâneo? Provar a si mesmo em conta-gotas, antes que os outros nos provem e enjoem de nós ou nos achem uma delícia? Talvez o tema seja ainda o mesmo. Não sei. Sou uma galáxia que se expande e dificilmente se contrai para se condensar.

Só sei de uma coisa: aquele cheiro, bem como aquele líquido viscoso, foi o meu próprio Faça-se, Luz!

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