Passados trinta anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, a demarcação e reconhecimento das terras indígenas ainda é um campo de disputa que envolve diversos interesses entre alguns setores da sociedade.
Segundo dados das demarcações de terras da Fundação Nacional do Índio (Funai), atualmente no Brasil, existem 462 terras indígenas que corresponde aproximadamente cerca de 12,2% do território nacional. Grande parte dessas terras estão localizadas na chamada, Amazônia Legal, uma área que ocupa 5.016.136,03 km² e que abarca os estados Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte dos estados do Mato Grosso, Maranhão e Goiás.
Essa concentração em grande medida é fruto do movimento de reconhecimento de terras indígenas iniciado pela Funai em meados da década de 1980. Nas demais regiões, o avanço da exploração econômica das terras, os desmatamentos e o agronegócio fizeram com que os povos indígenas conseguissem manter a posse das terras em áreas menores e mais dispersas, algumas delas sendo reconhecidas pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
Considerada um marco em prol das garantias dos direitos indígenas no Brasil, a Carta de 88 estabeleceu medidas protetoras e de promoção das populações originárias, sendo a única a contemplar e garantir direitos dos índios em seus títulos. Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), “a Constituição instaurou um novo marco conceitual, substituindo o modelo político pautado em noções de tutela e assistencialismo por outro, que afirma a pluralidade étnica como direito e estabelece relações protetoras e promotoras de direitos entre o Estado e comunidades indígenas”.
Os direitos constitucionais dos índios encontram-se definidos mais especificamente no título VIII, “Da Ordem Social”, dividido em oito capítulos, sendo um deles o “Dos Índios”, destacando-se os artigos 231 e 232, além de outros dispositivos dispersos ao longo do texto e de um artigo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Além disso, a Constituição também estabeleceu que os direitos dos índios sobre as terras são de natureza originária, ou seja, a posse é anterior à formação do próprio Estado e delimitou o prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas do país fossem demarcadas.
A burocracia de certa forma atrasa o andamento do processo de demarcação de terras. Com isso, o tempo vai passando e não se consegue chegar a um desfecho final acerca da homologação das terras indígenas.
As demarcações de terras indígenas
O direito dos povos indígenas às terras configura-se como um direito originário e, consequentemente, o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas se reveste de natureza declaratória. Portanto, a terra indígena não é criada por ato constitutivo – através de Contrato Social ou Estatuto – e sim reconhecida a partir de requisitos técnicos e legais, nos termos da Constituição Federal de 1988.
O Instituto Socioambiental define que a demarcação de terras hoje é realizada através de sete etapas. Em primeiro lugar é realizado um estudo antropológico para identificação da terra indígena por um grupo nomeado pela Funai. Em seguida, o estudo deve ser aprovado pelo presidente da Funai no prazo de 15 dias. A próxima etapa é o período de contestações, em que todos os interessados devem manifestar suas reivindicações e apresentar ao órgão indigenista. A quarta etapa consiste nas declarações dos limites das terras indígenas que é expedido pelo Ministro da Justiça através de portaria.
Com os limites declarados, a Funai promove a demarcação física da terra. O processo de homologação é submetido ao presidente da república e por fim a terra é registrada em cartório em até 30 dias após a homologação.
Na visão de Tonico Benites, líder Guarani-Kaiowá e sociólogo, “a regularização e reconhecimento da terra demandada compete a Funai que tem a responsabilidade de fazer um estudo antropológico, tem o decreto que fundamenta esse trabalho, mas todas essas ações normalmente são judicializadas e bloqueadas na justiça”.
O governo de Michel Temer possui o pior desempenho em demarcações de terras indígenas desde 1985. Das quatro terras declaradas durante a transição interina do presidente Temer, o seu mandato homologou apenas uma, a Baía dos Guató, de 19 mil hectares localizada no Mato Grosso.
O direto a terra ameaçado
Tonico Benites alerta ainda que o interesse do agronegócio em expandir suas atividades e as atuais propostas que estão tramitando no Congresso brasileiro acabam gerando ameaças aos direitos dos indígenas. “No Congresso existe Proposta de Emenda Constitucional 215 e outros projetos de lei que tentam alterar os direitos conquistados até o momento, antes mesmo de implementar e efetivar na prática. Outro problema que se enfrenta é a aplicação desses direitos, alguns processos de demarcação foram cancelados usando o termo de marco temporal, ou seja, se o índio não estava na terra em 1988, não tem mais o direito”.
Passados três décadas da efetivação da garantia dos direitos indígenas na Constituição de 88, os conflitos e disputas pela terra continuam. As lideranças das etnias Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva vêm sofrendo ameaças e até mesmo atentados à vida na tentativa de garantir o direito à terra.
Elpídio Pires, cacique e liderança Guarani-Ñandeva, sentiu na pele as consequências da luta pela terra ao ser alvejado com um tiro na barriga, Elpídio destaca a importância histórica da terra para os índios, pede o fim dos assassinatos das lideranças indígenas e afirma que seu povo se sente abandonado em sua região. “Temos nossas terras desde o tempo de nossos ancestrais, chamamos de “tekoha” que significa lugar onde moramos. Queremos sobreviver porque as reservas que foram cedidas pelo governo estão lotadas. Queremos justiça para a terra e o fim dos assassinatos de lideranças indígenas. A minha área é a divisa entre Paraguai e Brasil, às vezes nos sentimos abandonados na fronteira”.
A preservação dos costumes e tradições indígenas
Além do direito originário sobre a terra, o artigo 231 da Carta de 88 reconhece aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. No papel todo o discurso é muito bonito, mas na prática a história é diferente.
Localizado ao redor do estádio Mário Filho, o antigo Museu do Índio, também conhecido como Aldeia Maracanã foi construído em 1862 pelo Duque de Saxe e somente em 1910 foi doado ao Serviço de Proteção aos Índios, órgão público que era comandado pelo Marechal Rondon.
Com as obras de preparação do Maracanã para a Copa do Mundo e Olimpíadas, chegou a ser cogitado a demolição do espaço para virar um estacionamento do estádio. Em 2013, o Governo do Estado promoveu uma desocupação de forma violenta com o uso de bombas, spray de pimenta, entre outros. As etnias indígenas que habitavam o local acabaram sendo removidas e até hoje não conseguiram efetivar a ideia de transformar o prédio em um centro de referência da cultura indígena no Rio.
Lídia Silva de Freitas, cientista social e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense (PPGCI-UFF), iniciou sua trajetória acadêmica como estagiária no antigo Museu do Índio. Em entrevista à Biblioo, ela relembra com certa tristeza a atual situação de abandono do prédio.
”O que acho impressionante é deixar chegar do jeito que ficou. O abandono já era uma preparação para isso. Uma variável que não colocam no jornal e não é à toa, é que aquele prédio foi criado pelo Marechal Rondon para ser o Museu do Índio. Então só por isso ele já tinha que ser tombado. A trajetória histórica daquele acervo e a política indigenista, aquele prédio foi construído para isso. É impressionante como os jornais focam somente na questão arquitetônica, na localização e não falam na trajetória histórica do prédio”, lamenta a professora que estagiou no local nos anos de 1975 e 1976.
No passado histórico a disputa pelo acúmulo de metais preciosos era o que movia as grandes nações europeias em prol da exploração e do aumento de suas riquezas. Atualmente, o que move o dito desenvolvimento se fixa nas disputas territoriais, no aumento das monoculturas, no desmatamento e o desenrolar desse processo pode custar caro aos povos indígenas.