Eu moro em um país de tamanho continental, que possui 207 milhões de pessoas, 5.570 municípios, 26 estados e 1 Distrito Federal. Nesse país há abundante flora e fauna, dentre as quais há peculiaridades que só se encontram por aqui. Os recursos naturais finitos parecem que jamais se acabarão; os rios, os mares, as montanhas, as florestas… enchem os olhos de quem os veem. Que país maravilhoso, feito com esmero e capricho!

Eu moro em um país que “fora criado” devido à ganância de encontrar novas terras, novos horizontes, e com isso novos lucros para manter as regalias de cortes falidas moral e financeiramente, mas que precisavam mostrar a vida nababesca que tiveram em outrora.

Nesta perspectiva, iniciou-se a exploração de uma das nossas principais riquezas, e a que deu o nome a este país. Primeiro foi o Pau-Brasil, depois a cana de açúcar, depois os metais preciosos, ainda veio o café. Riquezas essas que precisavam de extensa mão de obra para a sua extração; no início os nativos da terra, depois os exportados de além mar, mais especificamente das regiões subsaarianas.

Moro em um país que a despeito de se manter economicamente ativo, levou o seu sistema escravocrata até o limiar do século XIX, na contra mão de outras nações, inclusive vizinhas, que já haviam abolido tal sistema muito antes. O meu país demorou para perceber que precisava abolir a escravatura, e quando o fez, não foi antes de sofrer pressão de dentro e principalmente de fora.

Com o tempo, o país foi tentando entrar em um rumo de modernidade, baseando-se em exemplos internacionais que haviam dado certo, mas a manutenção de velhos hábitos enraizado no seio da sociedade do meu país atrasou e muito a sua modernização.

No afã de mudar a sua realidade e apagar as marcas de mais de três séculos do regime escravagista, o meu país promoveu o ingresso de pessoas vindas de diversas partes do mundo; cedeu terras, elaborou leis, fomentou que tais pessoas pudessem trabalhar nas lavouras cafeeira, canavieira, algodoeira… e que ajudassem a povoar mais a nação, promovendo mais ainda a miscigenação tão presente no cerne deste país.

Pena que por trás de promover a vinda de outros povos para trabalharem e povoarem a nação, o meu país queria mesmo era embranquecê-la; ao invés de promover uma reflexão sobre o que foi o período escravagista que vigorou por séculos como sistema legítimo e reconhecido, o meu país quis apagar os vestígios dos povos que aqui foram escravizados, não dando visibilidade a eles através de uma promoção cidadã e nem pedindo desculpas pelas atrocidades cometidas.

Ai, o meu país!

Por manter, sem cerimônia, uma certa aversão à mudança que resultaria em benefícios para a sociedade em geral, vários golpes foram dados no meu país. Desde os idos de 1831, em que uma pressão de palacianos e da classe política do império, Dom Pedro I foi “obrigado” a renunciar a Coroa do Brasil, em benefício de seu próprio filho, que assumiria em 1840 com 15 anos não completos.

Seguindo a mesma toada, em fins dos oitocentos, uma junta militar declara proclamada a República, dando um golpe na monarquia que havia jurado proteger. Dentro desse último golpe, ocorreu um contra golpe, entre as mesmas forças militares: em 1891 Marechal Floriano dá um golpe depois da renúncia do Marechal Deodoro da Fonseca.

Seguindo o trem da história, o meu país observaria mais alguns golpes no decorrer dos anos, tudo para manter o status quo implantado pelas velhas figuras do poder que, de regime em regime, iam se perpetuando nos cargos que o Estado os dava. Houve golpe na década de 1930, impetrado pelo lendário Getúlio Vargas que conseguiu se manter no poder por seguidos 15 anos; houve golpe na década de 1960, que contou com contra golpes em seu bojo e perdurou até a década de 1980; houve golpe na década de 2010, e que estamos presenciando a articulação nos bastidores de um contra golpe dos que apoiaram o mesmo golpe.

De golpe em golpe o meu país vai vivendo e mantendo as elites, seus asseclas e prole no topo da hierarquia social. O que quero dizer com isso?! É notório que o Estado brasileiro forma uma casta intransponível e que parece ter leis e regalias específicas para os que fazem parte dele. Por mais que haja delito flagrante contra figuras que pertencem ao corpo estatal elas sempre são beneficiadas pelos seus pares ou pela conveniência e atuação de outros membros de poderes que também pertencem ao estado.

Segundo pesquisas feitas no sistema prisional do meu país, 60% da população carcerária é constituída por pessoas negras. Diante deste número esmagador, poderíamos intuir que os negros delinquem mais que os brancos. Todavia, não é bem assim! É bem verdade que a maioria da população que está às margens da sociedade, vivendo em bolsões de pobreza, miséria, sem saneamento básico, sem educação, saúde, emprego, moradia digna, é constituída majoritariamente por pessoas não brancas. Sabe-se também que nesses lugares inóspitos a facilidade para delinquência é grande e que para os jovens que procuram referência na vida não há muitas opções no leque de escolhas. Porém, a maioria da população que vive à margem da sociedade, em lugares com peculiaridades supracitadas, é constituída de trabalhadores, estudantes, gente que anda na lei e que luta muito para ter um canto para morar, comida na mesa e o mínimo para ter dignidade na vida.

É sabido também que as substâncias ilícitas que são vendidas no varejo nas comunidades/favelas da cidade são fornecidas no atacado por grandes traficantes que quando não são membros do estado estão ligados estritamente a quem faz parte do mesmo. Ou alguém esquece que um helicóptero foi apreendido pela Polícia Federal cheio de pasta base de cocaína e que o principal suspeito de ser o dono do produto é um senador do meu país?!

No meu país, se você for membro direta ou indiretamente do Estado, e principalmente ter a pele clara, os mecanismos pela sua liberdade serão acionados, mesmo que você esteja incorrendo em flagrante delito. Entretanto, se for um não branco e possuir traços negróides, desiste de ver o sol sem o entrave das grandes. Isso acontece no meu país, sem exagero!

Neste país tão belo, de exuberante natureza e riquezas infinitas, o filho de uma magistrada foi flagrado com 130 kg de maconha, munições e armas, grampeando pela Polícia Federal, armando a fuga de um prisioneiro (traficante); ele é branco, têm cabelos “lisos”, olhos claros, possui ensino superior, não morava na periferia e não está preso.

No meu país, um suspeito de portar materiais explosivos em sua mochila durante as manifestações contra o aumento das passagens em 2013 foi condenado! O seu crime era ter em sua mochila água sanitária e Pinho Sol; em outra abordagem (gozando de liberdade provisória) esse mesmo jovem foi parado por policiais e levado para a delegacia com a acusação de portar 6g de maconha e 9,3g de cocaína. Com essa acusação, este jovem pegou 11 anos de cadeia no regime fechado; ele é negro, morador de periferia, ensino médio, cabelo crespo, olhos escuros.

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