Conforme noticiou ontem (6) o jornal Correio do Povo, a Câmara Municipal de Uruguaiana, cidade localizada no extremo oeste gaúcho, vai solicitar, por proposição do vereador e procurador de Justiça do Estado, Eric Lins (DEM), a retirada do livro “Queermuseu — Cartografias da diferença na arte brasileira”, do acervo da Biblioteca Pública Municipal para que seja devolvido ao remetente, o Santander Cultural, junto com uma moção de repúdio.

Segundo o jornal, o parlamentar destacou na obra temas como canibalismo e apologia à pedofilia, e disse ser indigna de ser oferecida na Biblioteca Municipal ao corromper deliberadamente a cultura e a moral de estudantes e adultos.

“O Brasil enfrenta uma ‘crise moral’ no que se refere a manifestações ditas culturais de gosto e interpretações duvidosas. Em alguns casos, afrontam religiões e colocam em risco menores de idade, quando as expõem a ambientes onde se caracterizam a pedofilia e a zoofilia e a outras situações que, se não constrangem, fazem com que as crianças estejam à mercê de ideologias que, além de distorcidamente permissivas, são potencialmente nocivas para a formação de caráter”, disse Eric Lins ao jornal.

A moção proposta pelo vereador, e subscrita pelos demais membros da Casa, ao Santander Cultural considera a obra “de mau gosto, com conteúdo que passa pelo grotesco, pela lascívia distorcida e pela desnecessidade, além da falta de talento camuflada e eclipsada pela pretensa tentativa de chocar a sociedade”.

Ainda de acordo com o jornal, o parlamentar anunciou que será solicitada ao Executivo análise de mais obras para que, aquelas com “conteúdo similar, sejam retiradas [da biblioteca] por atentarem contra a moralidade”. O vereador está fazendo um chamamento nas redes sociais para que os colegas dos outros municípios do Estado também devolvam o livro da exposição com moção de repúdio.

Eric Lins, um ferrenho defensor das causas conservadoras, é autor de um projeto de lei (Projeto de Lei Ordinária nº 1/2017) que visa instituir, no âmbito do sistema de ensino do município de Uruguaiana, as diretrizes do “programa escola sem partido”. De acordo com o projeto, o professor fica proibido de “fazer propaganda em sala de aula que incite seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas, com finalidade político-partidárias”.

Após consulta da Biblioo, o Conselho Regional de Biblioteconomia da décima região  (CRB10) publicou uma nota repudiando a interferência da Câmara Municipal de Vereadores de Uruguaiana na gestão do acervo da Biblioteca Pública Municipal da cidade. Para o CRB10,  a ação dos vereadores atenta contra o Estado democrático de direito, visto que quer impor valores morais de uma parcela da sociedade, hoje em vantagem numérica de representação na câmara, sobre outra parcela da sociedade, em desvantagem.

“A Humanidade até hoje se beneficia da liberdade de formação de acervo das bibliotecas. Não é à toa que em guerras inimigos muitas vezes atentavam contra as bibliotecas, pela importância que seus acervos têm para o povo. A censura é um ato de agressão contra a biblioteca e o povo, utilizada em disputas internas pelo controle da sociedade, por grupos majoritários. Censura é inaceitável, pois para conteúdos potencialmente perigosos existe a ‘consulta restrita'”, diz a nota.

Procurado pela Biblioo, o vereador Eric Lins não havia se manifestado até o fechamento dessa reportagem.

Como tudo começou

Em meados de setembro a exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” estava em cartaz há quase um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre, quando foi cancelada pelo banco após uma série de protestos nas redes sociais. Acusada de fazer apologia à pedofilia, à zoofilia e de ofender a moral cristã, a mostra foi alvo de uma campanha, articulada principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL) e grupos religiosos, pedindo o seu fechamento.

Cenas do Interior II (ver baixo), um dos quadros da exposição, de autoria da artista plástica Adriana Varejão, mostra cenas de sexo entre duas figuras femininas japonesas, uma figura japonesa e um negro, dois homens brancos e um negro e duas figuras masculinas brancas indistintas com uma cabra, que divulgada sem contexto acabou por provocar a ira de muitos conservadores.

Cena de interior II, 1994, de Adriana Varejão. Foto: Eduardo Ortega / Acervo Atelier Adriana Varejão

“Esta é uma obra adulta feita para adultos. A pintura é uma compilação de práticas sexuais existentes, algumas históricas (como as chungas, clássicas imagens eróticas da arte popular japonesa) e outras baseadas em narrativas literárias ou coletadas em viagens pelo Brasil. O trabalho não visa julgar essas práticas. Como artista, apenas busco jogar luz sobre coisas que muitas vezes existem escondidas”, disse Varejão ao GaúchaZH.

Em entrevista ao jornal El País Brasil, Cássio Oliveira, doutor em Estética e Filosofia da Arte pela UFMG, disse que o fechamento prematuro da mostra só foi praticado porque existe hoje um contexto de pouco apreço à liberdade de expressão, que ameaça o poder transgressor da arte.

“A arte deve e pode falar sobre tudo que ela quiser. Isso não significa que a liberdade de alguns artistas não seja limitada por alguns aspectos pontuais. Por exemplo, se você tem uma obra de arte que, para ser feita, vai causar algum tipo de transtorno em alguém ou algum ser, você precisa ponderar se vale a pena ou não”, disse.

“Uma das principais críticas dos grupos que pediram o fim da mostra foi que ela fazia apologia à pedofilia e a zoofilia. O que fez, inclusive, um promotor ir ao local verificar a acusação, o que não foi constatado”, esclareceu Oliveira.

Essa semana o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), prometeu que também não vai permitir a exposição da Queermuseu no Museu de Arte do Rio (MAR). Num vídeo publicado nas redes sociais, Crivella questiona cinco pessoas se querem uma “exposição de pedofilia e zoofilia”, tendo uma resposta negativa de todos.

Em tom de deboche, Crivella disse: “Saiu no jornal que vai ser no MAR. Só se for no fundo do mar”. Após o anúncio, o prefeito encomendou à secretária de Cultura, Nilcemar Nogueira, neta de Cartola, que estudasse como impedir a exposição. “A população do Rio de Janeiro não tem o menor interesse em exposições que promovam zoofilia e pedofilia”, disse Crivella.

Em artigo publicado essa semana na Biblioo, Moacir dos Anjos, pesquisador e curador de artes visuais da Fundação Joaquim Nabuco (Recife), disse que não se pode imputar à arte uma leitura sem uma análise e discussão séria e informada. Ele falava da performance “La Bête”, de Wagner Schwartz, realizada na abertura da 37ª edição do Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), muito criticada por permitir a interação de um artista nu com crianças.

“Um dos principais problemas dessas acusações, e ao mesmo tempo algo que as alicerça, é a redução da performance a uma suposta imagem-síntese – uma criança instada a tocar um homem estranho e nu –, permitindo-se, a partir daí, a fazer todo tipo de ilações sobre as intenções do artista. Mais ainda: sobre a suposta irresponsabilidade do artista em promover uma situação que claramente atiçaria a ira dos fundamentalistas”, disse Moacir em seu artigo.

Para ele, além de redutoras, as acusações dirigidas ao artista, ao Museu a seus organizadores que derivam de uma cena que não corresponde aos fatos ocorridos no local, sendo antes uma versão sem contexto e deturpada, que foi difundida em rede por quem já estabeleceu um veredicto de culpa para quem faz arte.

“Não se pode atribuir à performance, muito menos à arte em geral, aquilo que lhe está sendo imputada sem uma análise e discussão séria e informada sobre o que se passou no local. A relação declarada da performance com a obra de Lygia Clark – totalmente razoável para quem conhece o trabalho da artista mineira – pode até ser questionada, mas para isso seria preciso pelo menos tentar confrontar seriamente o trabalho em seus termos”, pondera Moacir.

Em resposta à censura imposta à exposição de Porto Alegre, algumas editoras promoveram, em suas páginas no Facebook, a “semana da arte degenerada”, oferecendo em promoção obras de artistas de viés erótico. Foi o caso da Leonardo Da Vinci, tradicional livraria carioca, que promoveu “uma queima para intolerante e fascista nenhum botar defeito” (em alusão à Alemanha Nazista, que destruiu obras de arte consideradas “degeneradas”).

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