Por Laurentino Gomes em O Globo

As visitas de um historiador ao vasto acervo de José Mindlin

 

Nas últimas duas décadas tenho frequentado algumas bibliotecas famosas em busca de fontes para meus livros. Nada, porém, se comparou à sensação de cruzar o portão daquela casa da Rua Princesa Isabel, no bairro do Brooklin, em São Paulo. Frequentei a Biblioteca Mindlin uma dezena de vezes no final de 2006, um ano antes da publicação do meu primeiro livro “1808”. Minhas visitas eram sempre pela manhã. A biblioteca estava situada nos fundos, junto ao muro coberto de heras — uma construção moderna, de linhas discretas, em dois andares, sombreada por uma jabuticabeira. Ao abrir a porta, sentia-se o cheiro suave e inconfundível dos livros antigos.

Lá dentro imperava um silêncio religioso, quebrado de vez em quando pela voz das “três graças”, como Mindlin se referia às três mulheres que guardavam sua biblioteca. Cristina Antunes era responsável pela catalogação. Rosana Gonçalves respondia pelo acervo de periódicos e de fotografias. Elisa Nasarian cuidava dos arquivos de terceiros, da correspondência e da agenda de Mindlin.

Em uma daquelas visitas, sentei-me à mesa situada ao pé da escada que levava ao segundo andar. Cristina me trouxe um raríssimo livro de 1808, escrito por Manuel Vieira da Silva, médico e conselheiro particular de D. João VI. Entre as folhas amareladas pelo tempo, um bilhete ajudava a entender o valor da obra: “Primeiro tratado de Medicina publicado no Brasil: de grande valor bibliográfico”. Era uma anotação de Rubens Borba de Moraes, parceiro de 40 anos de Mindlin na arte de colecionar. Na estante situada à minha esquerda havia um quadro com uma dedicatória: “Guita para José como prova de muito amor”. Era o projeto arquitetônico da biblioteca, que Mindlin ganhara da mulher, Guita, de aniversário, em 1983. Foram parceiros e cúmplices na paixão pelos livros a vida toda. Guita morreu em junho de 2006. E, desde então, ele nunca mais foi o mesmo.

Às 10h, ouviam-se passos leves descendo a escada, um ritual que se repetia todos os dias. Aos 92 anos, lúcido e sempre bem-humorado, o senhor chegava para mais uma jornada de trabalho. As “graças” o recebiam com alegria e carinho. Elisa pegava o “Estadão”. Lia as chamadas de primeira página, os editoriais e a coluna política de Dora Kramer. Depois passava à leitura da correspondência: dezenas e dezenas de cartas, e-mails e convites para eventos, lançamentos de livros, concertos, peças teatrais e festas da sociedade paulistana. Sentado ao seu lado, Mindlin ouvia em silêncio e orientava as respostas. Em seguida vinha a parte mais interessante: os livros. As “graças” eram leitoras vorazes e estavam sempre bem informadas sobre os lançamentos do mercado editorial. Ao contratar suas colaboradoras, Mindlin fazia uma única exigência: que lessem muito, o tempo todo.

Em 2006, míope e vítima de uma deformação na retina, o maior bibliófilo do Brasil já não conseguia ler sozinho. Mas continuava devorando livros. Elas se revezavam na tarefa diária de ler em voz alta para ele. A leitura daquela manhã foi “Equador”, romance histórico do jornalista português Miguel Sousa Tavares. A cena era tocante: sentado no canto do sofá, imóvel, de olhos fechados, o corpo franzino, as mãos postas sobre os joelhos, Mindlin sorvia cada frase e cada palavra da voz de Cristina Antunes, que preenchia o silêncio da biblioteca. A sensação de prazer no seu rosto era indisfarçável — como se aquele fosse o último, o único, o melhor de todos os oito mil livros que dizia ter lido na vida.

Mindlin morreu em fevereiro de 2010, aos 95 anos. Um de seus últimos e sempre grandiosos gestos foi doar o tesouro bibliográfico para a Universidade de São Paulo. É um dos centros de pesquisa mais modernos do Brasil, com todo o acervo digitalizado e disponível pela internet. A tecnologia facilitará muito a vida dos futuros pesquisadores, mas dificilmente reproduzirá a experiência de adentrar naquele santuário enquanto seu criador ainda estava vivo. É ela que levo para sempre na memória.

Laurentino Gomes é jornalista e escritor, autor dos livros “1808”, “1822” e “1889” e quatro vezes ganhador do Prêmio Jabuti de Literatura

 

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