Por Fátima Sá / Cristina Tardáguila, O Globo. Foto: Agência Brasil. 

Ministro critica mecanismo de fomento e anuncia: irá ao Senado para que empresas deduzam, no máximo, 80% do que investem em projetos culturais.

RIO — De volta ao Ministério da Cultura (MinC), que comandou de 2008 a 2010, o sociólogo baiano Juca Ferreira, 66 anos, quer modificar o principal mecanismo de fomento à Cultura no país. Ele promete brigar para reduzir o teto da renúncia fiscal. Hoje, as empresas podem deduzir de seus impostos 100% do valor que investem em projetos culturais. Juca quer que o teto seja de 80%. Segundo a proposta dele, os 20% restantes deveriam ser destinados ao Fundo Nacional de Cultura (FNC), permitindo que o governo decida onde colocar esse dinheiro. Procurado, o Ministério do Planejamento não quis se pronunciar sobre essa hipótese. Em entrevista ao GLOBO, o ministro também falou de outros temas que dependem de forte articulação em Brasília: a Lei de Direito Autoral e o Vale-Cultura. Ele ainda detalhou seus planos para a Funarte e a Cinemateca Brasileira e o modo como pretende fortalecer a cultura num ano de crise financeira e política.

O senhor tem feito críticas à Lei Rouanet. Rever o principal mecanismo de fomento da cultura nacional será uma bandeira do MinC?

Sou bastante crítico à Lei Rouanet e formei minha opinião com base nos dados do IBGE e do Ipea. A lei criou uma ilusão de que haveria uma parceria público-privada financiando a cultura. Não é verdade. O ministério tem em torno de 300 funcionários para analisar projetos (que disputam o direito de captar recursos junto a empresas que pretendam investir em cultura via renúncia fiscal). Há uma quantidade astronômica de propostas todos os anos, e muitas recebem aval para captar o benefício. Só que apenas 20% conseguem, e isso fica concentrado em dois estados. Oitenta porcento do total renunciado vai para (os estados de) Rio e São Paulo. Sessenta por cento, para duas cidades (as capitais), e são sempre os mesmos (proponentes) que recebem: os que dão retorno de imagem às empresas. Não é culpa da empresa. Se criamos um mecanismo para isso, ele pode ser usado. Mas não é parceria público-privada. É outra coisa.

É o quê?

Esse dinheiro corresponde a 80% do que o governo federal tem para financiar atividades culturais no Brasil. Levando em consideração o que eu falei, me diga: é possível desenvolver política pública assim? A Rouanet dá a aparência de parceria público-privada, mas é a empresa decidindo onde vai aplicar o dinheiro, é a privatização de recursos públicos para construir imagens de empresas, algumas delas altamente lucrativas.

Qual seria a saída?

A saída é depositar esse dinheiro — não pode ser menos — no Fundo Nacional de Cultura (FNC) e criar mecanismos de avaliação de projetos que definam uma distribuição mais justa de recursos, capaz de financiar a cultura em todo o território nacional e em todas as linguagens.

Mas, ao entregar ao governo a decisão sobre quem financiar, corremos o risco de haver um dirigismo cultural no Brasil, não?

Dirigismo cultural é feito também pelo mercado. Temos uma hipersensibilidade para o dirigismo público e nenhuma sensibilidade para o dirigismo de mercado. É preciso ter essa sensibilidade para ambos os lados, porque os dois são perversos. E a possibilidade de corrigir um dirigismo público é repetir o que é feito na Ancine, no Fundo Setorial do Audiovisual. Com a participação da sociedade, com transparência, com lisura política, não dentro do balcão de uma repartição. Não rejeito a parceria público-privada. Basta olhar meu trabalho recente (como secretário municipal de Cultura) em São Paulo. Trabalho com instituições privadas. Agora, colocar tudo para o outro decidir, não existe. É uma distorção do governo Collor.

E como fica a renúncia?

Fica igual, mas (a dedução) não pode ser de 100%. O teto da renúncia ficará em 80% (na proposta do ministro, os 20% restantes iriam para o Fundo Nacional de Cultura, para atender a projetos de interesse da política cultural do governo).

Mas isso não está no projeto Procultura elaborado pelo ministério, aprovado na Câmara e atualmente à espera de apreciação no Senado…

Não. Depois que saímos (do governo Lula), o projeto mudou. Mas isso para mim é vital. Senão, não tem política pública em cultura. Então, eu tenho duas saídas: trabalhar com o Senado para recuperar a lógica central ou pedir de volta o projeto. Eu prefiro trabalhar com o Senado, mas as estratégias de relação com o parlamento ultrapassam meu limite.

O senhor fala então de fazer emendas ao projeto. Mas quem será o defensor da cultura no Senado? Ainda mais com as críticas da ex-ministra Marta Suplicy à sua gestão.

Minha experiência com o parlamento é boa. Quem mais me ajudou a incluir as empresas culturais no Supersimples, por exemplo, foi o finado (deputado federal) Sérgio Guerra (1947-2014), líder do PSDB. Não sou sectário. Tenho responsabilidade pública e trabalho com a diversidade cultural política e regional de todas as dimensões. Não posso responder agora, mas vou construir uma estratégia. E a dificuldade com a Marta é circunstancial. Não acredito em oposição dela.

Por que o senhor critica os 100% da Lei Rouanet e não critica os 125% que a Lei do Audiovisual prevê de renúncia para as empresas?

Eu implico com os dois. Mas, para subir uma escada, temos que dar o primeiro passo, temos que pisar no primeiro degrau. Há meninos que saem pulando de dois em dois, mas a construção de uma política pública cultural é um processo. Não sou um imperador, mas um ministro que trabalha com a ideia de gestão compartilhada. Tenho uma avaliação positiva do avanço do audiovisual. Não quero ser fator de transtorno.

Mas, ao reduzir a porcentagem de renúncia de uma lei e adiar a mudança da outra, o senhor vai desequilibrar o mercado. As empresas tendem a passar a usar a Lei do Audiovisual…

Vamos supor que isso seja verdade e que, temporariamente, aconteça. Na transição, o dinheiro que se tinha continuará se tendo. Essa é a questão. Mesmo que um ministro malvado inviabilize a parceria público-privada, 100% (dos impostos) estarão com o poder público de toda forma e serão destinados à cultura (hoje, os impostos vão para o caixa do governo, e podem , ou não, ser usados no setor). Não vamos perder nada. Se houver represália por parte de quem se associa ou por parte de quem usa a lei, eles perdem, deixando de se associar a um grande ativo.

Num ano em que o governo e o Congresso estão preocupados com ajustes econômicos e com escândalos de corrupção, o senhor também terá o desafio de destravar a nova Lei do Direito Autoral, que está parada na Casa Civil.

Parada, não. E o Senado não é insensível nem quando falamos em modernizar as leis de fomento nem a Lei de Direito Autoral. Ela vai andar. Vai sair. E temos pela frente a tarefa de remontar o Conselho Nacional do Direito Autoral, que foi extinto. Será um órgão de controle público dentro do MinC e deve sair ainda no primeiro ano deste mandato. Temos uma obrigação, um prazo fixado por lei. E acho que a tecnologia digital e a internet criaram ambientes que, se ignorarmos, não haverá como garantir o direito autoral. Sou absolutamente contra a flexibilização dos direitos de autor. Sou a favor da ampliação eles, de garantir que o ambiente digital possa garantir isso. É da internet que tem que sair o pagamento do autor.

O orçamento do MinC é um dos que mais sofrem cortes. Em 2014, dos R$ 3 bilhões autorizados, só R$ 1 bilhão foi executado. Houve greves, e, segundo levantamento, 700 dos três mil servidores se aposentam até 2017. Como dosar isso?

O diálogo está bom, muito bom com a Casa Civil. Tenho um nível de respeito grande por parte do Palácio do Planalto tanto da presidência quanto dos ministros. O governo é um poliedro, um corpo que tem vários lados. Tem que tratar de saúde, educação… Cultura é política pública estratégica. A cultura não é a cereja do bolo, não é secundário. Sou solidário com as dificuldades que o governo precisa enfrentar. Não serei cricri. Mas a destinação do dinheiro público tem que ser discutida. O projeto (de Brasil) não pode ser economicista. É preciso construir um país, e isso não se faz só com vontade. É preciso ter um orçamento, e 2% é um mínimo possível (em 2014, o valor autorizado foi de 0,18% do orçamento total da União).

O vale-cultura foi um projeto que veio da sociedade e ganhou corpo na outra vez em que o senhor passou pelo MinC. A adesão, no entanto, tem sido baixa. Onde está o erro?

O vale-cultura está sendo implantado. Eu não diria que houve um erro. Se você comparar esse processo com o do vale-refeição, verá que a implantação também não foi fácil. Devem existir falhas de formatação. Já ouvi algumas delas, mas não quero adiantar nada. Vou pedir uma avaliação técnica porque não há a possibilidade de esse mecanismo ser subestimado, até porque quem o criou foi o ministro que aqui vos fala.

Qual é o caminho para aumentar a adesão?

Não é uma equação fácil. Tem que começar na escola, formando plateia, formando público, formando subjetividade para consumo de produtos de cultura. O vale-cultura é um instrumento facilitador. Para o empresário é bom porque cria um benefício que se reflete no ambiente de trabalho, na qualificação da mão de obra. Para os trabalhadores é ótimo, alimenta a necessidade cultural. Para o mercado também é bom porque vende mais. Vamos fazer essa primeira etapa de avaliação e corrigir falhas. É claro que tenho a consciência de que o momento é de muita precaução econômica. Está todo mundo jogando na retranca. Enquanto as políticas de enfrentamento da crise econômica (adotadas pelo governo federal) não derem resultado, a tendência é que todos fiquem nas trincheiras.

O senhor tem dado importância à Funarte em suas falas públicas. Quais os planos para a fundação?

O problema da Funarte é que ela entrou em decadência. Não fomos capazes de garantir sua renovação depois da transição da ditadura para a democracia, e ela não foi capaz de gerar processos. Todos nós, gestores, temos alguma responsabilidade nisso. Eu puxei logo para mim a minha parcela. Durante os oito anos do governo Lula, não fomos capazes de reverter esse processo de decadência. Pronto. Minha parte, eu assumo. Agora, ela está meio que falida, mas é um instrumento institucional importante. O primeiro passo (para recuperá-la) foi nomear um jovem intelectual, articulado: o Francisco Bosco. O segundo será constituir uma comissão para pensar a renovação das políticas para as artes, buscando um caráter nacional. O cinema foi capaz disso. A música, também. Mas estamos sem política para as artes. Não há política de formação. Temos escolas isoladas, músicos, atores e técnicos que são fruto de geração espontânea. O Brasil faz na arte o que faz com o futebol: extrativismo. Colhe talentos sem nenhum investimento.

Diz-se que a Funarte é carioca.

A Funarte parece carioca, mas não tem prestado serviço relevante nem para o Rio. Toda instituição tem que estar ancorada em algum território. Não é o lugar onde ela está que define sua eficiência e eficácia. O importante é revitalizá-la. Se precisarmos tirá-la (do Rio), tiramos, mas não detecto o fato de ela estar ancorada aqui como o problema.

E a Cinemateca Brasileira? É vista como uma entidade paulista…

Temos que ter muito cuidado e carinho com a Cinemateca. Ela sofreu um ataque especulativo, um processo absolutamente político. A imprensa tem que ter cuidado para não criar outra Escola Base (fechada em 1994, em São Paulo, após acusações de pedofilia que se revelaram infundadas. O inquérito foi arquivado por falta de provas, e os suspeitos de molestar crianças, inocentados). A Cinemateca tem três papéis importantes: preservar a memória do cinema e do audiovisual brasileiros, apoiar tecnicamente a produção cinematográfica e dar visibilidade a isso. Como a Funarte, no Rio, a Cinemateca virou uma instituição paulista, mas ela tem que prestar serviço a todo o Brasil. Na área da visibilidade, está muito concentrada em São Paulo e no prédio dela.

A Controladoria-Geral da União investiga repasse de R$ 105 milhões feitos na sua gestão e usados sem licitação. O que realmente aconteceu?

Investimos R$ 105 milhões em equipamentos de melhor qualidade. A Cinemateca é reconhecida internacionalmente como a terceira melhor do mundo. Por que vai ser questionada por isso? Tem que ser questionado aquele que permite sua decadência, que mete a mão na coisa pública ou que deixa de prestar serviço. As pessoas da Sociedade de Amigos da Cinemateca (que recebeu o montante) são da qualidade de Ismail Xavier, Bresser-Pereira. E eu já disse: tragam fogo, que eu ponho a mão no fogo. É ignorância. Há um questionamento sobre a compra do acervo completo de Glauber Rocha sem licitação. Como vai licitar obra singular e original? Custou R$ 3 milhões e pouco, cerca de um terço do que o governo dá para financiar um filme.

O senhor está aborrecido com isso.

É evidente que sim. Isso é uma ignorância. Eu boto a mão no fogo pelas pessoas da Sociedade. Quem tem que ter vergonha não são eles ou o ministério, mas quem reverbera uma coisa dessas. Eu quero que a CGU encerre o processo. Puna quem tem que punir e libere a instituição. Não há nada que justifique essa paralisia. Acho até que os órgãos de controle caíram numa cilada feita para tentar obscurecer uma ação grandiosa que foi criada num determinado momento.

Mas o que pretende fazer, objetivamente?

A Cinemateca precisa retomar o trabalho. Vamos modernizá-la administrativamente. Está em estudo a criação de uma OS para termos facilidades administrativas de gestão, porque essas instituições não podem funcionar bem sob o regime de administração direta. A burocracia é grande. Depois é preciso colocar nela uma diretoria do ramo, gente com capacidade para reerguê-la, que tenha envolvimento com a preservação da memória cinematográfica, conheça acervo brasileiro e não diga bobagens como que R$ 3 milhões pela obra de Glauber é caro.

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