Há dois tipos de fascistas. Aquele que tem certeza do alvo que deve ser demolido e aquele que não sabe absolutamente por que existe um alvo. O primeiro se faz de imbecil, que é pra poder passar um trator sobre o que ele odeia; o segundo aceita a imbecilidade e se torna o instrumento de uso particular do outro. O primeiro sabe que é preciso elaborar estratégias de demolição da democracia, das políticas públicas que tornam o Estado um tantinho menos desigual, da escola como lugar de elaboração do pensamento e não de cópia do já dado, da arte como ferida aberta atuando com seus mecanismos de revolta e fazendo com que os olhares cômodos sejam constrangidos.

O segundo fascista atua no raso, não sabe nadar, nunca se aprofunda, acostumado a repetir, repetir, repetir fórmulas prontas e dadas pelos sistemas conservadores. O segundo fascista é o sujeito ideal para ser objeto do primeiro fascista, porque age sem pensar. É marionete dos mal-intencionados. E se torna a arma perfeita para o uso do primeiro fascista. Arma que não pensa, só executa as atrocidades perpetradas cuidadosamente pelo primeiro.

O primeiro fascista sabe arquitetar o horror. Sabe perfeitamente que é preciso se apropriar de símbolos e discursos para executar seu plano sórdido. Não é que ele goste das cores da Nação ou ame vestir-se com a cor do símbolo pátrio. Tem consciência de que o discurso nacionalista é apaixonante e pode inflamar o ódio. E com paixão não se brinca porque ela mata. Ou melhor, se brinca justamente porque ela mata. O primeiro fascista sabe disso muito bem. Bandeiras, cores nacionais, hinos, gestos, slogans; tanta semiose a serviço de um suposto amor… amar a pátria é defendê-la com unhas e dentes. E armas.

O segundo fascista torna-se o palhaço das estratégias maquiavélicas do primeiro. E sai por aí repetindo o discurso de ódio àqueles que seriam “os inimigos da pátria”. Quem é inimigo de quem mesmo? De repente, desenterram-se os brasões, os velhos modelos que já não servem para o país (nunca serviram). “Monarquia é que era um sistema de respeito!”, dizem. Viva o império verde-amarelo do Brasil! Viva o tempo em que lugar de negro era na senzala ou no cafezal ou no tronco! Viva o tempo em que índio só tinha valor quando virava tema para poema e para romance românticos, com fortes cores locais, ainda que revestido de medievalidade. Viva o rei! Viva os conselheiros do rei! Viva o país escravagista! Viva o pensamento escravocrata legitimado pelos altos conselhos régios! Tempo bom era esse, não este em que nossos filhos brancos (não somos mestiços!) têm que dividir a cadeira da universidade com descendentes de escravos, com índios, com a ralé.

País que se preze precisa saber elaborar constituições onde o povo saiba exatamente o seu lugar. O segundo fascista toma isso como verdade inquestionável e sai por aí cometendo atrocidades em nome do projeto sórdido do primeiro fascista. O segundo fascista é tão burro, que, se ele pensasse um pouco, saberia que jamais deveria fazer parte do plano do primeiro porque, vivesse em outro tempo, o segundo seria escravo do primeiro, ralé, subalterno e máquina que trabalha para receber somente pau, pano e pão.

O primeiro fascista elabora uma catequese do ódio para doutrinar o primeiro. E é assim que as crenças passam a servir como espaços propícios para os dez mandamentos do fascismo. E aqui vou apenas mostrar cinco grandes mandamentos-paródia. Primeiro mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas e, se possível, fazer dele arma de dizimação do outro. Segundo mandamento: Tomar o santo nome em vão para que a paixão se torne ódio. Terceiro mandamento: só minha crença é que importa, todas as outras são falsas e imorais e devem ser extirpadas, com sangue mesmo (qualquer discurso sobre ecumenismo deve ser demonizado porque lembra um tempo em que fé e vida eram indissociáveis na tal abominável “teologia da libertação”). Quarto mandamento: igreja só pode se meter em política se for para legislar em favor dos próprios fiéis, os não-crentes devem sofrer tanto quanto as outras religiões (se a religião for de matriz africana, deve ser repreendida, em nome do Senhor, porque é coisa do demônio). Quinto mandamento: os políticos devem ser divididos em bons e maus: os bons, obviamente são aqueles que se unem para a causa própria: bancada da bíblica, da bala, do boi (ou do agronegócio); os maus são aqueles que só falam em minorias e políticas públicas (estes devem ser combatidos e humilhados).

Os outros cinco mandamentos ficam para a elaboração do segundo fascista, que logo vai copiar e colar frases feitas, achando que fez grandes coisas. Exemplo da catequese do ódio: ano passado, numa das manifestações contra a presidenta Dilma, um grupo de carismáticos, com suas cruzes enormes ao pescoço, seus terços e suas imagens de Maria, reunido em frente à Igreja da Sé, numa noite de vigília pré-manifestação do Pato amarelo, cantava louvores ao Senhor dos Exércitos e pedia intervenção militar no país já, porque somente os militares poderiam estar a serviço de Deus e da política brasileira. Afinal, Deus é brasileiro ou não é?! “Senhor Deus, Adonai, El Shaday, clamamos por justiça divina, Senhor dos Exércitos! Desce tua espada implacável contra os corruptos, permita que o exército brasileiro intervenha e assuma o poder!”. Uma oração tão devota ao Deus dos fascistas, não é? Não venham me dizer que o “assim na terra como no céu” significa que exércitos aqui e lá estão a serviço da paz. Me recuso!

O primeiro fascista sabe que a arte precisa ser combatida sem trégua. Ele arma estratégias para descontextualizar os temas da arte em exposição. E o faz articulado com os temas religiosos e moralistas. Daí, basta umas fotografias e vídeos do objeto que deve ser envergonhado e se lança na fogueira da internet. Pronto: o segundo fascista vai tratar de compartilhar o material e destilar seu ódio. As palavras de ordem são: “Não mexam com nossas crianças!”, “Não falem mal da nossa crença!”, “Não façam do museu um culto às aberrações!”, “Deus criou homem e mulher, o resto é abominação!”, “Arte nunca foi mostrar corpos nus e libidinosos!”.

O primeiro fascista sabe que o segundo fascista é um ótimo arauto de suas manipulações porque age sem pensar, porque pode agir, inclusive, contra aquilo que ele mesmo é. O segundo fascista seria digno de pena, se não fosse tão maldoso na sua servidão. O segundo fascista seria cômico, se não fosse trágico. O segundo fascista seria tratável, se não fosse homem-bomba. O primeiro fascista sabe a dimensão da burrice como estratégia de luta. O segundo é a burrice sem dimensão.

Estamos mesmo num mundo doido. E doído. Doentes todos. Nunca como agora o fascismo tem tanta concretude, alimentado pela doutrina do choque. O mundo virtual se tornou um estranho espaço onde os covardes se nutrem de coragem para pregar suas mentiras por verdades. Parece mesmo que as redes sociais são um espaço de anti-alfabetização. As informações (forjadas ou não) são apresentadas como suposta formação. Há muita coisa errada aí nesse acúmulo de material de leitura. Quando estamos discutindo o valor da leitura para a libertação do sujeito, esquecemos que a internet é o suporte eminentemente feito para leitores. Paulo Freire – esse grande educador que os fascistas têm execrado por aqui – dizia que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Eu me pergunto: os leitores das redes sociais estão realmente lendo de modo ético?

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