No começo do século XX, em uma igrejinha pacata de um vilarejo espanhol, mais um casamento era celebrado. Como qualquer outro jovem casal da época, os noivos cumpriram os rituais religiosos e eternizaram o momento com uma fotografia. O que ninguém sabia naquele momento era que o casal não era formado por um homem e uma mulher, combinação exigida pelos búfalos e coiotes institucionais, e sim por duas mulheres.

A cerimônia curta casava pela primeira e única vez na história conhecida da igreja católica (até agora) Elisa Sánchez Loriga e Marcela Gracia Ibeas. Elisa se passou por Mario, primo que havia morrido algum tempo atrás, para oficializar a união. A biografia oficial da relação entre Elisa e Marcela é acidentada.

Sabemos que se conheceram em uma escola de formação de professoras e que travaram uma amizade profunda. Naquela época, os pais de Marcela, atentos a um possível envolvimento das duas, enviaram a filha para estudar na capital espanhola. Os esforços não foram bem-sucedidos, pois as garotas voltaram a se encontrar e morar juntas.

Para abafar a falação local, articularam um plano: Elisa assumiria a identidade do primo e elas poderiam legalizar o matrimônio. Com o cabelo curto, bigode postiço, roupas masculinas e muita coragem, Elisa reapareceu como Mario e o plano foi executado. Nesse ínterim, Marcela estava grávida (não se sabe de quem).

Pouco tempo depois, o disfarce foi descoberto e começou a perseguição que existe desde antes de Cristo: pessoas com suas verdades absolutas obrigando tudo e todos a permanecerem entalados nas caixas das convencionalidades. Elisa e Marcela foram perseguidas, fugiram, tentaram novamente criar uma realidade, mas foram redescobertas. O final dessa história acabou em desencontro. Pelo menos é o que se conta e se sabe.

No entanto, a cineasta espanhola Isabel Coixet decidiu dar uma nova roupagem à história do primeiro “casamento sem homem”, como ficou conhecido, e deu vida à Elisa Y Marcela (2019), filme recém-lançado pela Netflix.

Imagem original de Elisa Sánchez Loriga e Marcela Gracia Ibeas. Foto: internet

Optando pelo preto e branco, a produção tenta associar os rastros biográficos – que não são tão abundantes – com o respeito e a licença poética na hora de contar a história dessas duas personagens. Por conta disso, há certa demora no desenrolar da trama – o que irritou críticos e uma parcela do público.

Outro ponto de desgaste da obra foi o trançado seco e quase inexistente quando se trata de explorar as subjetividades, emoções e turbilhão interior de Elisa (Natalia de Molina) e Marcela (Greta Fernández). A sensação é de ver uma chapa de raio X tal como ela é, mas sem as devidas orientações médicas sobre o que está acontecendo ou que osso ou órgão está ali representado.

A sintonia entre as atrizes Natalia de Molina e Greta Fernández é boa, mas poderia ter sido melhor trabalhada, com mais espaço para a liberdade criativa e até mesmo sentimental. A cena do polvo, utilizada como peça alegórica, fez formigar o questionamento da real necessidade de seu uso. Detalhes que me saltaram às vistas ficaram ausentes no decorrer do filme: as duas jovens aceitaram o surgimento de um amor entre elas? Como elas se sentiram? Foi um sentimento que surgiu com aceitação ou negação?

Mesmo depois dos créditos finais, a mente das duas mulheres continua um verdadeiro mistério. Conhecemos sobre a coragem, a ousadia, a histeria coletiva e coisas do tipo. Mas não sabemos nada além dessa fronteira sobre Elisa e Marcela, nem mesmo para alimentar a partícula poética dentro de nós.

De todo modo, a possibilidade de trazer à tona a vida de pessoas com tamanho poder e coragem pessoal, personagens icônicas do final do século XIX e começo do século XX que desafiaram a todos, é uma iniciativa sempre bem-vinda, especialmente em tempos de tentativa de recuo legal e social.

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