“Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los.” (“É isto um homem?”, Primo Levi, Editora Rocco, 2013).
No final da década de 1980 eu era um uniformizado e orgulhoso estudante do Instituto de Educação, isso por volta dos meus onze anos de idade. Já gostava muito de ler e de escrever. Certa vez, tive que ir até a secretaria para resolver algo prosaico em relação a caderneta escolar e no caminho encontrei um dos inspetores do Instituto. Quanto mais eu explicava a ele que estava indo resolver algo na secretaria, mais ele me acusava de estar fazendo algo errado.
Para o inspetor não bastava a minha explicação ou meu relato de que tinha sido liberado pela professora. Me explicar causava uma irritação imensa nele, que não queria conversa e sim obediência. Assim, nosso diálogo terminou com a seguinte frase dita por ele: “pessoas como você morrem com a boca cheia de formiga”.
Para um garoto de onze anos de idade, a frase soou tão sem sentido, tão fora de lugar, que lembro de retornar para a sala de aula, em silêncio, sem questionar e sem resolver o que precisava resolver. Por alguns anos a frase habitou meu imaginário como uma indagação: O que ele quis dizer?
Anos depois, após compreender o que havia de perversidade e de racismo na afirmação do inspetor, ela se cravou como um trauma na minha consciência. Aquele inspetor havia comunicado para um menino negro de onze anos que o destino dele, por ser negro, e por trazer as características que ele julgava intrínsecas aos negros (como mentir, enganar, ou uma falha de caráter) morreria cedo, assassinado.
Certa vez, já trabalhando como bibliotecário, recebendo na biblioteca uma turma de alunos do Ensino Fundamental, um menino negro, aparentando ter oito anos de idade, pediu a professora para ir ao banheiro, ela respondeu que não, dizendo que o menino era malandro, que ele não queria ir ao banheiro, sugerindo, assim, que ele estava mentindo.
Vendo que a professora permitia aos outros alunos e alunas não negros irem ao banheiro e diante de todo o estranhamento que a situação me causou, intervi e o menino foi ao banheiro e logo voltou para assistir à narração de histórias, sem ter feito no caminho nenhuma malandragem fantasiada pela professora.
Em outro momento, em que também recebia uma turma de escola pública, um garoto negro, por volta dos treze anos, afirmava que era escritor. Ele veio conversar comigo e a professora que estava junto dele repetia insistentemente: “Ele cismou que é escritor, já falei para ele parar com isso”.
Relembro estes fatos, repleto das emoções causadas por esta sequência de tragédias noticiadas em relação às crianças e aos jovens brasileiros, uma sequência de violências físicas e simbólicas. Cito as que foram noticiadas, mesmo tendo a consciência de que a situação é muito mais grave, visto que em todas as estatísticas sobre as condições de vida no Brasil, grita a vulnerabilidade das crianças negras e a mortalidade de jovens negros.
No dia 18 de maio, uma casa onde um grupo de jovens brincavam, no município de São Gonçalo (RJ), foi alvejada em uma operação das policias federal, militar e civil. Além dos tiros, duas granadas foram atiradas na casa. Como resultado desta operação, um menino, João Pedro, faleceu após levar um tiro pelas costas; alunos do Colégio Franco-Brasileiro, no Rio de Janeiro, trocaram mensagens racistas voltadas à aluna Ndeye Fatou Ndiaye, ofensas que não vou reproduzir. O colégio tinha até ontem (07) para responder quais providências foram tomadas em relação aos ataques racistas realizados por seus alunos; Adriel Oliveira, um menino de doze anos que sonha escrever um livro de fantasia, e administra um perfil literário no Instagram, recebeu, no último dia 27 de maio, no seu perfil uma mensagem racista (que também não irei reproduzir). Após o ataque, algumas matérias passaram a exaltar o fato do estrondoso aumento de seguidores de Adriel.
Em 04 junho foi noticiada outra tragédia brasileira. Mirtes Renata, mãe de Miguel, menino de cinco anos, precisou ir trabalhar com o seu filho. Para passear com os cachorros da sua empregadora, Sarí Côrtes Real, esposa do prefeito de Tamandaré (PE), Mirtes deixou o filho sob os cuidados de Sarí, que não hesitou em deixar o menino, que queria ir ao encontro da mãe, sozinho no elevador. Um encontro que não ocorreu, pois o menino se perdeu e caiu da altura de 35 metros, do nono andar do prédio.
Os casos relatados neste texto nos obrigam a uma reflexão sobre como a sociedade brasileira vê a criança e o jovem negro. Em posição contrária a um imaginário coletivo brasileiro que os desumaniza, estas crianças e estes jovens são indivíduos vulneráveis a diversos tipos de violências, todas elas imbricadas com o racismo, essencialmente racistas ou potencializadas por ele.
Como temos possibilitado reprojetar seus futuros?
No país em que meninas negras com menos de doze anos trabalhavam e muitas ainda trabalham como domésticas e babás e que muitos meninos negros entram no mercado de trabalho por esta idade. No país que reatualiza constantemente as representações de meninos negros como violentos, armados, irascíveis. Quando não são forças de trabalho, quando não possuem suas imagens sequestradas para encenar o horror, quais as outras possibilidades que estamos construindo para essas crianças?
Quando a escola é um ambiente hostil de micro violências e de ataques a autoestima e a integridade emocional, como reconstruir a estrutura? Quando os coordenadores pedagógicos de ensino fundamental das escolas vão compreender que se não ensina sobre relações raciais na escola, nenhum outro conteúdo tem real valor? E todas as outras violências que recaem como uma rede repleta de punhais sobre a sociedade destruindo infâncias e juventudes, como proteger as crianças e jovens negros da sina de ter que viver nesta realidade?
Não tenho as respostas, mas acredito muito na importância das perguntas para se iniciar algo, limpar a poeira das ideias antigas e se reprojetar o futuro, quantas vezes forem necessárias. Comecei esta reflexão com um trecho com o qual Primo Levi inicia seu livro “É isto um homem?”, que é um relato sobre os horrores do nazifascismo. “É isto um homem?” possibilita, entre outras, reflexões sobre as relações mais simplistas que fazemos entre ser humano e ser bom, em uma escala de valores positivos em que quanto mais próximos de uma “ética humana”, mais “humanos” seríamos.
Aproximando esta reflexão inquieta para a estrutura da sociedade brasileira, que se movimenta em tensão constante mais para uma nova forma de escravismo que para uma democracia social, esta realidade brasileira apresenta-se de forma que quanto mais “humanos”, mais dignos estão os integrantes de uma parcela mínima da população de desfrutar uma qualidade de vida, produzida por tantos, e vivenciada por tão poucos. Neste pensamento da elite brasileira, por exemplo, “pretos e pobres, acostumados a pular esgoto, não precisam se proteger em uma pandemia”, procurem saber.
Neste jogo perverso de distribuição de locais sociais e de determinação de quem deve ocupar cada local, releva-se as tentativas constantes dos opressores de caracterizar as vítimas de suas opressões como menos humanas, ou de projetar nelas, nas vítimas, o horror das existências de quem oprime, seus defeitos e perversidades.
Descontruindo esta estratégia, pergunto: não seriam os opressores menos humanitários que suas vítimas? Não são os racistas os desumanos? Visto que são eles, os racistas, que não promovem a “humanidade”? Uma pessoa que abandona uma criança de cinco anos, trancada em um elevador, promove o que? Representa o que como ser humano?
Caminho para o fim desta breve reflexão com outras perguntas, ditas por Sojourner Truth, em 29 de maio de 1851, na Convenção pelos Direitos das Mulheres em Akron, Ohio, nos Estados Unidos. Uma das grandes vozes para o feminismo negro, Sojourner questiona:
“Olhem para mim. Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?”
Os questionamentos de Sojourner me atormentaram neste dia de tanta dor pela tragédia com este menino de cinco anos. Aos olhos da mulher que o deixou sozinho e indefeso em um elevador, ele seria uma criança? Aos olhos de policiais que atiram pelas costas em um jovem que estava brincando com amigos, seriam eles jovens brincando? O que você vê, leitor, quando olha para uma criança negra, ou para um jovem negro?
Uma resposta para este padrão violento de hostilidades e crimes com que jovens e crianças negras são tratados pode estar no que escapa da tradicional hipocrisia brasileira em que pesquisas nos informam que há racismo no Brasil, embora ninguém se autodeclare racista. Circulou nestes dias, pelas redes sociais um vídeo de 59 segundos, onde uma influenciadora digital afirma que o racismo é uma coisa natural, um instinto de defesa do (olha ele) ser humano.
Para a tal influenciadora é natural que (ele de novo) o ser humano tenha medo de uma pessoa negra e não tenha medo de uma pessoa branca. É uma fala tão ignorante quanto reveladora, reveladora porque a grande característica do racismo à brasileira é negar no discurso o que se explicita cotidianamente na prática.
Ao ver a foto do Miguel, eu vejo uma criança e todas as coisas que uma criança vive e gosta de viver, vejo a inocência e as fragilidades comuns a uma criança, vejo um menino que não poderia ter sido deixado sozinho em um elevador. Quando olho para a Fatou e para o Adriel vejo jovens com uma integridade e uma potência de vida de grande beleza, e quando penso em João Pedro, é também uma criança que imagino, pois muitos meninos nesta idade ainda são infantilizados, cheios de sonhos e confusões, vivem a infância e a pré-adolescência em um lá e cá bonito de se ver, em formação. Uma infância que lhe foi roubada, e uma vida que foi roubada de sua família, um sequestro brutal de futuro, a destruição de uma potência de ser feliz, que se dá com naturalidade e desprezo pelo o outro, quando este outro é uma pessoa negra. Assim se atualiza e reencena constantemente o racismo neste país.
O poeta Ricardo Aleixo, no poema Meu negro, nos diz: “Quando se diz que um homem é um negro o que se quer dizer é que ele é mais negro do que propriamente homem.” A mira do racismo fez dessas crianças alvo porque elas são vistas mais como negras (com toda a carga de depreciações da imagem, estereótipos e valores negativos inventados pelos brancos) que como crianças, a miopia perversa de não as enxergar como o que são, crianças, vem servindo de combustível para uma máquina de horror, uma máquina que precisa ser destruída.
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Deixo como uma dica para quem desejar dedicar tempo de leitura para reflexões sobre a formulação de um mundo melhor para todos, o livro “O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo”, de Raquel Paiva (Editora Mauad, 2007). Entre tudo que há de interessante no livro, destaco, principalmente o que diz respeito as possibilidades de se opor a um individualismo que desumaniza.
As afirmações da autora de que na relação comunitária o indivíduo, ao partilhar da existência, se reconhece na vida do outro, ou seja, para o indivíduo, a necessidade de pertencimento à comunidade significa também o seu enraizamento no quotidiano do outro, bem como o reconhecimento de sua própria existência, de forma que, compartilhar o espaço, existir com o outro funde a essência do ser, sendo possível perceber-se na medida em que se descobre pelo olhar do outro, deixam pistas importantes para pensarmos o nosso tempo.
Raquel Paiva ainda afirma que “esta proposta comunitária surge como nova possibilidade de sociabilização, com o propósito de fazer frente ao modelo econômico em que o número de excluídos parece cada vez maior. Os sujeitos individuais e coletivos podem escapar aos ditames do poder, às pressões da alienação, graças ao impulso dado pela experiência da pluralidade e da expressão múltipla.”
Comecemos ontem, porque o hoje, ao que parece, não existe mais.