Nossa sociedade, alicerçada em pilares solidificados sob a influência de gregos, romanos e cristãos, com elevado grau de patriarcado que serve como balizador das relações sociais, mantém um significativo déficit no tocante a igualdade entre as pessoas, classes econômicas e mormente entre os gêneros.

Falar de mulher na perspectiva da igualdade obriga-nos a mergulhar em um oceano profundo na história registrada, buscando justificativas para a flagrante desigualdade, sem esperar muito obter muito sucesso na empreitada. Isso se dá pelo fato de que a mulher foi conscientemente preterida dos anais historiográficos, aparecendo apenas sob a condição de subjugada e incapaz.

Desde a criação dos sistemas regulatórios entre pessoas que conviviam no mesmo especo geográfico e comungavam das mesmas formas de enxergar o mundo (cultura), a divisão de tarefas consideradas do homem e da mulher foi um marco fundamental para se pensar uma sociedade dividida entre o quê é masculino e o quê é feminino.

Cronologicamente, estas transformações sociais, baseada na concepção dos gêneros, datam do período peleolítico superior. Milhares de anos se passaram e a forma de organização social não difere muito das vividas pelos nossos ancestrais mais remotos.

É claro que, no que diz respeito às condições de existência na Terra, somos muito mais avançados do que eles, mas no que concerne os aspectos culturais balizadores da estrutura social, continuamos nas cavernas, abrigando-nos das intempéries das eras glaciais.

Ao analisar as sociedades patriarcais e patrelineares, não é raro constatar que a mulher ocupa posição secundária frente ao homem. Com forte influência das doutrinas cristã advindas da igreja romana (católica), as sociedades do Ocidente, majoritariamente foram construídas sob esse alicerce.

O texto sagrado, comumente usado para organizar a liturgia católica, serviu em inúmeros casos/anos como, também ele, código civil, principalmente nos países que permaneceram sob a condição de colônia das grandes metrópoles europeias. De modo particular (como fonte de inspiração para este texto) o Brasil, mesmo já tendo 27 anos de República Federativa, promulgou um código civil em 1916 que mais se assemelhava aos códigos criados na Idade Média[1].

Reservando as especificidades, me refiro aqui da condição em que a mulher aparecia no mesmo. Sob forma de quantificar o texto, o Código Civil de 1916, na sua Parte Geral (disposição preliminar), no chamado Livro I (das Pessoas), no Título I (da divisão das pessoas), no capítulo I (das pessoas naturais), lê-se o seguinte: “Art. 2º. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”.

Quando o texto traz a palavra “homem”, não quer se referir à humanidade, mas o agente social masculino, aquele que foi criado para exercer soberania sobre todas as outras criaturas (como está determinado no livro do Gênesis, na Bíblia).O artigo 2º supracitado é importante para entendermos os que o seguem, sobretudo o artigo 6º, que é de suma importância ser citado diretamente neste texto. Vejamos:

“São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, I), ou à maneira de os exercer:

I – os maiores de 16 (dezesseis) e os menores de 21 (vinte e um) anos (arts; 154 a156);

II – As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal;

III – Os pródigos;

IV – Os silvícolas.”

Parece até uma piada o texto supracitado, mas é preciso também contemporizar para não cometer anacronismo. O texto está respaldado na tradição que a sociedade guardava como determinante para a organização social. Embora possamos hoje (século XXI) ler esse mesmo texto do Código com estranheza, na época que foi lavrado ele fazia total sentido.

Mas não precisamos ir há 104 anos para tentarmos entender a sociedade brasileira nos dias atuais. Ao pensar que homens e mulheres só se tornaram iguais perante a lei há 32 anos, ou seja, com a promulgação da Constituição cidadã de 1988, pode-se entender (não aceitar) a letargia em que às leis sofrem processos de transformação, mesmo em havendo forte clamor popular por mudanças significativas no tecido social.

A despeito das novas tecnologias, que integram as pessoas em conectividade cada vez mais comum nas cidades (e campo); das barreiras fronteiriças que se abrem para os mercados externos (embora se fechem para os refugiados), dentre outros exemplos, a mentalidade de alguns líderes e/ou chefe de estados, respaldados pela população de seus países, mantém-se no tempo da pedra lascada.

A forma milenar com que a agente social mulher foi formado, ou seja, um ser menor, sem importância, dado a sensualidade e torpezas (e se evocado o mito cristão da queda do paraíso, a mulher ainda recebe a pecha de portadora dos pecados e dos males do mundo), deu largo terreno para que homens mal intencionados pudessem desenvolver seus sistemas de dominação sem muita dificuldade.

Ora, todo dominante exerce a dominação, seja por meios legais e/ou por meio da violência (seja ela de que natureza for). Em reportagem de setembro de 2019, a Folha de São Pulo trouxe dados sobre pesquisa divulgada pelo Sinan/Ministério da Saúde, cujo foco era a violência contra as mulheres. Infelizmente os números são bem assustadores, haja vista toda a sorte de mecanismo de comunicação, bem como o acesso à informação que cada vez mais fica popularizado.

Segundo a pesquisa, uma mulher é agredida por no mínimo um homem a cada 4 minutos no Brasil. Em 2018 foram registradas cerca de 145 mil denúncias de violência sofrida por mulheres (violência física, psicológica, sexual dentre outras); essas mulheres sobreviveram para contar o fato!

Quando à pesquisa busca saber o número relativo da violência por sexo, 68% são de mulheres, contra 32% de homens. Neste caso se refere também à violência física, psicológica, sexual dentre outras. Há também o caso das subnotificações, ou seja, quando a vítima deixa de prestar queixa, ou algum órgão que tem a obrigatoriedade de comunicar as autoridades competente sobre o fato,  não faz.

Outro tipo de violência que, de acordo com os números, mostra-se em crescimento, a despeito das campanhas de conscientização, é o estupro. No ano base de 2018 (ano da pesquisa), o índice de estupro coletivo marcou expressivas 3.387 notificações, com o mesmo número de mulheres vitimadas. Em se tratando da mesma modalidade, com a presença de homens também como vítimas, o número chega a 4.716 pessoas.

Não obstante, os números supracitados neste texto (de forma simplificada) nos releva, ainda, o “mapa dos agressores”. 36% dos homens que cometem algum tipo de violência contra a mulher são os próprios cônjuges, seguido de 14% de ex-cônjuge e 11% de conhecidos das vítimas. Os números ainda revelam que 9% dos agressores são desconhecidos das vítimas; 8% são namorados; 6% pai; 4% ex-namorado; 4% padrasto; 4% filho; 3% irmão e 1% outros.

Embora algumas pessoas veem à violência contra a mulher de forma jocosa, esse é um assunto que deveria estar na pauta de discussão de casas legislativas, bem como em debates em todos os segmento que compõem o tecido social. Infelizmente não é isso que temos observado no Brasil (e ou outras partes do mundo); toda a sorte de agressão contra a mulher é banalizada, quando não ridicularizada!

A despeito de toda violência contra a mulher que tem se noticiado, bem como as campanhas de conscientização para a diminuição da mesma, logo nas primeiras semanas de 2020, um deputado estadual de Santa Cataria, que atende pelo nome de Jessé Lopes, e ajuda a construir o Partido Social Liberal (PSL), deu o que falar nas redes sociais em âmbito nacional.

Nas palavras do deputado, o feminismo está acabando com alguns direitos que as mulheres possuem, inclusive o direito de “serem assediadas”. Para o parlamentar, uma mulher ouvir “hei gostosa, vai lá em casa; delícia de mulher…” dentre outras cantadas que vou poupá-los de ler aqui, é um direito delas, e não uma forma chula de se dirigir as mesmas. O referido deputado ainda afirmou que as feministas extremistas tinham inveja de mulheres que são “cantadas” próximas a canteiro de obras.

Em um país que separa mulheres de homens em vagões especiais em metrô e trens urbanos; que mulheres têm medo de saírem sozinhas em determinadas cidades e em certos horários; que pessoas com laços sanguíneos e/ou amorosos são os que mais cometem todos os tipos de violência contra a mulher, um homem público proferir tais afirmações e ainda as endossar por conta da repercussão, é necessário “parar o mundo, pois eu quero descer!”

[1] O Código Civil de 1916 foi substituído por um novo em 2002, o que continua em vigor nos dias atuais

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